THOMAZ BRUM
Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada… Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos de fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase… patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé – dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das ideias, o sangue corre… Sob as resoluções firmes ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes –, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse… Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas consequências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo – tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror –, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta… Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta… Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-la a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros é um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam: cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos: a administração, com seus regulamentos – metafísica para uso de macacos… Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.
Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer “nós” com um tom de segurança, invocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os “puros” são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história: não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os “idealistas” arruínam. Sem doutrinas, só possuem caprichos e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma “concepção da vida”. Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção…
O fanático é incorruptível: se mata por uma ideia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir; e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre por uma ideia… Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança, uma calamidade…
Original
En elle-même toute idée est neutre, ou devrait l’être; mais l’homme l’anime, y projette ses flammes et ses démences ; impure, transformée en croyance, elle s’insère dans le temps, prend figure d’événement : le passage de la logique à l’épilepsie est consommé… Ainsi naissent les idéologies, les doctrines, et les farces sanglantes.
Idolâtres par instinct, nous convertissons en inconditionné les objets de nos songes et de nos intérêts. L’histoire n’est qu’un défilé de faux Absolus, une succession de temples élevés à des prétextes, un avilissement de l’esprit devant l’improbable. Lors même qu’il s’éloigne de la religion, l’homme y demeure assujetti; s’épuisant à forger des simulacres de dieux, il les adopte ensuite fiévreusement : son besoin de fiction, de mythologie triomphe de l’évidence et du ridicule. Sa puissance d’adorer est responsable de tous ses crimes : celui qui aime indûment un dieu, contraint les autres à l’aimer, en attendant de les exterminer s’ils s’y refusent. Point d’intolérance, d’intransigeance idéologique ou de prosélytisme qui ne révèlent le fond bestial de l’enthousiasme. Que l’homme perde sa faculté d’indifférence : il devient assassin virtuel; qu’il transforme son idée en dieu : les conséquences en sont incalculables. On ne tue qu’au nom d’un dieu ou de ses contrefaçons : les excès suscités par la déesse Raison, par l’idée de nation, de classe ou de race sont parents de ceux de l’Inquisition ou de la Réforme. Les époques de ferveur excellent en exploits sanguinaires : sainte Thérèse ne pouvait qu’être contemporaine des autodafés, et [581] Luther du massacre des paysans. Dans les crises mystiques, les gémissements des victimes sont parallèles aux gémissements de l’extase… Gibets, cachots, bagnes ne prospèrent qu’à l’ombre d’une foi, — de ce besoin de croire qui a infesté l’esprit pour jamais. Le diable paraît bien pâle auprès de celui qui dispose d’une vérité, de sa vérité. Nous sommes injustes à l’endroit des Nérons, des Tibères : ils n’inventèrent point le concept d’hérétique : ils ne furent que rêveurs dégénérés se divertissant aux massacres. Les vrais criminels sont ceux qui établissent une orthodoxie sur le plan religieux ou politique, qui distinguent entre le fidèle et le schismatique.
Lorsqu’on se refuse à admettre le caractère interchangeable des idées, le sang coule… Sous les résolutions fermes se dresse un poignard; les yeux enflammés présagent le meurtre. Jamais esprit hésitant, atteint d’hamlétisme, ne fut pernicieux : le principe du mal réside dans la tension de la volonté, dans l’inaptitude au quiétisme, dans la mégalomanie prométhéenne d’une race qui crève d’idéal, qui éclate sous ses convictions et qui, pour s’être complue à bafouer le doute et la paresse, — vices plus nobles que toutes ses vertus — s’est engagée dans une voie de perdition, dans l’histoire, dans ce mélange indécent de banalité et d’apocalypse… Les certitudes y abondent : supprimez-les, supprimez surtout leurs conséquences : vous reconstituez le paradis. Qu’est-ce que la Chute sinon la poursuite d’une vérité et l’assurance de l’avoir trouvée, la passion pour un dogme, l’établissement dans un dogme ? Le fanatisme en résulte, — tare capitale qui donne à l’homme le goût de l’efficacité, de la prophétie, de la terreur, — lèpre lyrique par laquelle il contamine les âmes, les soumet, les broie ou les exalte… N’y échappent que les sceptiques (ou les fainéants et les esthètes), parce qu’ils ne proposent rien, parce que — vrais bienfaiteurs de l’humanité — ils en détruisent les partis pris et en analysent le délire. Je me sens plus en sûreté auprès d’un Pyrrhon que d’un saint Paul, pour la raison qu’une sagesse à boutades est plus douce qu’une sainteté déchaînée. Dans un esprit ardent on retrouve la bête de proie déguisée ; on ne saurait trop se défendre des griffes d’un prophète… Que s’il élève la voix, fût-ce au nom du ciel, de la cité ou d’autres prétextes, éloignez-vous-en : satyre de votre solitude, il ne vous pardonne pas de vivre en deçà de ses vérités et de ses emportements ; son hystérie, son bien, il veut vous le faire partager, vous l’imposer et vous défigurer. Un être possédé par une croyance et qui ne chercherait pas à la communiquer aux autres, — est un phénomène étranger à la terre, où l’obsession du salut [582] rend la vie irrespirable. Regardez autour de vous : partout des larves qui prêchent; chaque institution traduit une mission; les mairies ont leur absolu comme les temples ; l’administration, avec ses règlements, — métaphysique à l’usage des singes… Tous s’efforcent de remédier à la vie de tous : les mendiants, les incurables même y aspirent : les trottoirs du monde et les hôpitaux débordent de réformateurs. L’envie de devenir source d’événements agit sur chacun comme un désordre mental ou comme une malédiction voulue. La société, — un enfer de sauveurs ! Ce qu’y cherchait Diogène avec sa lanterne, c’était un indifférent…
Il me suffit d’entendre quelqu’un parler sincèrement d’idéal, d’avenir, de philosophie, de l’entendre dire «nous» avec une inflexion d’assurance, d’invoquer les « autres », et s’en estimer l’interprète, — pour que je le considère mon ennemi. J’y vois un tyran manqué, un bourreau approximatif, aussi haïssable que les tyrans, que les bourreaux de grande classe. C’est que toute foi exerce une forme de terreur, d’autant plus effroyable que les « purs » en sont les agents. On se méfie des finauds, des fripons, des farceurs; pourtant on ne saurait leur imputer aucune des grandes convulsions de l’histoire; ne croyant en rien, ils ne fouillent pas vos cœurs, ni vos arrière-pensées ; ils vous abandonnent à votre nonchalance, à votre désespoir ou à votre inutilité; l’humanité leur doit le peu de moments de prospérité qu’elle connut : ce sont eux qui sauvent les peuples que les fanatiques torturent et que les «idéalistes» ruinent. Sans doctrine, ils n’ont que des caprices et des intérêts, des vices accommodants, mille fois plus supportables que les ravages provoqués par le despotisme à principes ; car tous les maux de la vie viennent d’une «conception de la vie». Un homme politique accompli devrait approfondir les sophistes anciens et prendre des leçons de chant; — et de corruption…
Le fanatique, lui, est incorruptible : si pour une idée il tue, il peut tout aussi bien se faire tuer pour elle ; dans les deux cas, tyran ou martyr, c’est un monstre. Point d’êtres plus dangereux que ceux qui ont souffert pour une croyance : les grands persécuteurs se recrutent parmi les martyrs auxquels on n’a pas coupé la tête. Loin de diminuer l’appétit de puissance, la souffrance l’exaspère ; aussi l’esprit se sent-il plus à l’aise dans la société d’un fanfaron que dans celle d’un martyr; et rien ne lui répugne tant que ce spectacle où l’on meurt pour une idée… Excédé du sublime et du carnage, il rêve d’un ennui de province à l’échelle de l’univers, d’une Histoire dont la stagnation serait telle que le doute s’y dessinerait comme un événement et l’espoir comme une calamité…