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abismo / abyssos / ἄβυσσος / abyssus / abyssum / tehom / Ab-grund / a-bismo / ab-ground / Abgrund / abismo / abyss

  

Jean-Cyrille Godefroy

O abismo é antes de tudo uma imagem do Inferno, o Sheol. Na Índia, as regiões infernais do Patala que se encontram ao pé do Monte Meru se subdividem em sete círculos, dos quais seis "abismos": Atala: o horrível abismo; Vitala: o terrível abismo; Soutala: o enorme abismo; Talatala: o abismo dos abismos; Mahatala: o grande abismo; Rasatala: o infecto abismo. Quanto ao Patala, ele é o abismo propriamente dito, o princípio abissal. Nestas regiões infernais habitam respectivamente as serpentes, os titãs, as grandes serpentes (as nagas), os espíritos da ilusão (Maya), um "formidável gigante" (mahabali), o "gênio do ouro" (Katakishvar) e enfim, no seio da região a mais profunda do Patala, o rei dos Nagas ele mesmo.

Notemos que existe inumeráveis outros abismos infernais.

Todavia o abismo pode também significar a Divindade primordial e indiferenciada, como no caso de Bythos, o abismo preexistente dos gnósticos   valentinos.

Leo Schaya

“Assim como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?” (Sl 42:1-2) Tal é o início deste salmo   pleno da sede de absoluto que experimenta o homem que se sente afastado da Realidade pura e que sofre., até o fundo de sua alma, de todas as implicações deste afastamento.

Lendo este salmo, encontra-se no versículo 7, as palavras: “Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e as tuas vagas têm passado sobre mim.” — abismos, cataratas, ondas e vagas que no contexto deste sofrimento simbolizam todas as provações que sofre o sedento do Absoluto. Este aspecto negativo do “abyssus abyssum invocat” foi mal interpretado em sua aplicação proverbial indicando que uma falta acarreta outro. Esta interpretação não somente não corresponde ao simbolismo evocado, mas representa uma verdadeira inversão da significação mais profunda da expressão escriturária em questão, significação que supera mesmo o dito simbolismo.

Esta superação se inscreve nos diversos graus da anagogia, que — para nos referir à exegese judia — se eleva do sentido literal ao simbolismo, em seguida ao aprofundamento especulativo e, enfim, à interpretação puramente metafísica, a qual nos interessa aqui diretamente. Nesta interpretação, se vai além do plano do sofrimento e considera seu reverso oculto e positivo, a finalidade beatifica mesmo das provações, onde os “abismos”, as “catadupas”, as “ondas” e as “vagas” se revelam sob o aspecto de sua realidade interna, espiritual, deificante.

Para abordar este aspecto, partamos do texto original — hebreu — da expressão escriturária que nos ocupa: tehom-el-tehom qore; a tradução disto é: “o abismo (ou “um abismo”) chama (ou “invoca”) o abismo (ou: “um abismo”). Qara significa com efeito, ao mesmo tempo, chamar e invocar (mas também: criar, convocar, convidaram publicar, anunciar, proclamar, nomear, ler, acontecer a alguém). Na via espiritual qeriyah reveste tudo particularmente o sentido de “invocação” do Nome de Deus; e o “abismo” da qual ele é questão aí representa — no mais alto grau da exegese — Deus Ele mesmo. O “abismo que invoca o abismo”, é Deus que se invoca Ele mesmo; que se chama Ele mesmo por seu Nome; que enuncia eternamente seu Verbo que Ele é Ele mesmo. Mas em primeiro lugar, tehom, o “abismo”, significa neste caso ain, o “Nada” divino, o Não-Ser ou Sobre-Ser, o Superinteligível, o Silêncio supremo, as Trevas mais que luminosa, assim como está escrito: “e trevas sobre a Face do Abismo” (Gen I,2) e “silêncio diante de Sua Face” (Habakuk II, 20). Não se trata de um silêncio de morte, de um mutismo sem possibilidade de expressão, de uma treva privada de toda claridade e conhecimento, mas da Essência oculta de toda luz, de toda sabedoria e inteligência, de toda palavra ou revelação; pois, “mesmo as trevas não são obscuras para Ti, e a noite brilha como o dia, as trevas são como a luz” (Sl 139, 12).


No cristianismo, um Dionísio o Areopagita   orou assim: “... conduz-nos não somente além de toda luz, mas além mesmo da ignorância, até o mais alto topo das Escrituras místicas, aí onde os mistérios simples, absolutos e incorruptíveis da teologia se revelam nas Trevas mas que luminosas do Silêncio: é no Silêncio, com efeito, que se aprende os segredos destas Trevas, das quais é pouco dizer o afirmar que ela brilha da luz mais brilhante no seio da mais negra obscuridade, e que, permanecendo ela mesma perfeitamente intangível e perfeitamente invisível, ela preenche dos esplendores mais belos que a beleza as inteligências que sabem fechar os olhos.

No Islã, um Abd al Karim al-Jili  , por sua vez, cantou as Trevas supremas, entre outras nestes termos:

“Ela é o Si divino, não pelo que Ela comporta de trevas,
Mas pelo que Ela comporta de luz, se se compreende bem.
Outra que a Unidade não conhecível
Ou a Unicidade conhecível do múltiplo,
Inapreensível nEla mesa, subtraída a toda visão,
Denomina-se a Obscuridade divina”. (Do Homem Universal, Titus Burckhardt  )

E al-Jili precisa: “Por “Obscuridade” divina designa-se a Realidade das realidades (haqiqat al-haqaiq), que não poderia sr qualificada de “divindade” nem de “criatura”, sendo Essência pura (superontológica), sem relação com nenhum grau divino (ontológico) ou de criatura, de sorte que não se pode atribuir-lhe qualidade nem nome.

O Abismo das Trevas mais que luminosas é o único real, porque Ele é a Realidade mesma de tudo o que se afirma como realidade: Ele é Este, fora do que não há nenhuma realidade. Logo, se é dito que o “abismo chama ou invoca o abismo”, trata-se, do ponto de vista mais elevado da exegese, deste único Abismo de Realidade. Enquanto tal, Ele é o Supra-Ser absoluto, indeterminado e indeterminável, que, Ele, permanece eternamente oculto, tenebroso e silencioso; e o que se destaca dEle como um chamado, uma invocação, um verbo, um nome, é o Ser divino e luminoso, que se determina, se afirma, se chama, se nomeia, se invoca Ele mesmo: “Eu sou Aquele que sou” (Ex III,14), “Eu sou YHWH (“Aquele que é”, YHWH derivando de HaYaH, “ser”) (ibid. XX,2). “e Eu sou Deus” (Is XLIII, 12). Mas se afirmando e se invocando Ele mesmo como Ser e Deus, Ele afirma e invoca também necessariamente sua Essência oculta, seu Abismo de realidade absoluta. Assim o Abismo chama o Abismo, não diretamente, por Ele mesmo, mas indiretamente, pela autodeterminação ou a auto-afirmação do Ser.

O ser não seria o que Ele é sem sua Essência que é o Supra-Ser; Ele tem tudo deste último, compreendendo seu próprio ato eterno, cuja origem primeira e última finalidade não são, consequentemente, outras que o divino Abismo. Assim a invocação do Ser, sendo endereçada a Ele mesmo, provém no entanto deste Abismo e alcança Ele, e posto que se determinando e se invocando Ele mesmo, o Ser faz participar a sua autodeterminação e auto-afirmação, por definição, tudo que é, segue-se que todos os seres, sabendo ou não, O invocam com Ele, afirmando por aí mesmo sua Essência, que é também a sua, o Abismo de sua própria Absolutismo.