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Bharata / Natya-Shastra / Nâtya-Çâstra

  

DAUMAL  , René. Bharata. L’Origine du Théâtre. La Poésie et la Musique en Inde. Traductions de Textes Sacrés et Profanes. Paris: Gallimard, 1970 (excertos do original)

O Texto

O Natya-Shastra de Bharata é o mais antigo tratado de arte dramática hindu. Natya significa a princípio dança e representação mimetizada, mas o teatro hindu, desde a origem, é a arte total. É dança, mímica, música, canto, poesia, arquitetura, mise en scène, e mesmo pintura. Em todas estas matérias, o Natya-Shastra é a primeira autoridade, porque é um saber tradicional; recebe até o nome de Quinto Veda  .

Entende-se por saber tradicional (veda, -vidya) um corpo de doutrina desenvolvendo o sentido do Veda original sob um ângulo particular, sem perder de vista a meta última que é o conhecimento; esta última palavra não está a princípio aqui senão para velar um buraco de nosso pensamento, e cabe a cada um de nós preenchê-lo. Desde a metafísica e a dança até o trato dos elefantes e à mecânica, todos os corpos de doutrina, para os hindus, estão ligados por esta meta última que têm em comum, seja denominada liberação, conhecimento ou unificação; em aprendendo o tiro ao arco ou a gramática, pode-se aprender a se conhecer.

Os hindus se preocupam muito pouco com a cronologia, se atribuem ao Natya-Shastra uma alta antiguidade; entendem por aí sobretudo uma proximidade espiritual com o ensinamento do Veda. De fato, a coletânea é uma compilação que se estende sem dúvida por vários séculos, e algumas passagens parecem ter sido interpoladas ou remanejadas em uma época bastante recente. Mas a maior parte do livro, e a mais importante, é certamente muito antiga. Todos os outros tratados de arte dramática e de poesia citam Bharata, e ele mesmo não cita nenhum. Bharata, contrariamente aos autores posteriores que usam amplamente do «exemplo clássico», não cita nenhuma peça escrita. O «Teatro» de que fala não é o gênero literário que, em seguida, tomou abusivamente este nome; era ainda ação, exercício e rito, muito mais que representação. A língua, simples e concisa, bem marcada, versificada em uma meta mnemônica e frequentemente com francos golpes de termos de rima, está desprovida de ornamentos preciosos ou barrocos do sânscrito posterior; mas o vocabulário técnico abunda em palavras prakrits e dravidianos, e estes poderiam fazer supor uma antiga tradição teatral pré-ariana, talvez aquela que subsiste ainda em nossos dias em certas partes do sul da Índia. Notamos ainda a tendência shivaita do Natya-Shastra, e a ausência de todo índice permitindo de ser crer posterior ao budismo. O tratado parece portanto posterior às antigas epopeias e anterior de pelos menos quatro ou cinco séculos a nossa era; é bem vago, e a princípio pouco útil.

O texto, transmitido oralmente, não foi posto por escrito senão a uma época bastante recente. Tomei por base o texto estabelecido por Joanny Grosset segundo os principais manuscritos conhecidos; é a princípio a única edição europeia, e rendeu grandes serviços aos letrados hindus eles mesmos. É lamentável que tenha ficado inacabada.

O Autor

A palavra bharata já é empregada no Rig-Veda, como epíteto   ou oposição a Agni (o Fogo). Segundo Paul Regnaud, teria ainda aí seu valor etimológico de «portador» e designaria o fogo sagrado como portador da oferenda, os «cem filhos» de bharata sendo uma metáfora para as chamas múltiplas do lar. Segundo outros, o bharata védico já teria o valor de um nome próprio, aquele de um dos chefes dos conquistadores brancos da Índia (antigamente nomeada «país dos Bharatas»), e o «fogo Bharata» seria o culto particular da tribo ou da família bharata. Enfim, das expressões como «vindo de bharata» são comumente empregadas para designar um bardo ou um ator; isto quer dizer que vem do país dos Bharatas, ou que é afiliado à tradição dramática de bharata, não não sabemos. Não é impossível que, por um destes recruzamentos etimológicos frequentes em sânscrito, as palavras «bharata, bharático» têm ao mesmo tempo guardado em lembrança de seu sentido original, o ator sendo a princípio (Sahitya-Darpana, etc.) definido como «aquele que porta sobre ele (que assuma) a natureza individual do personagem que desempenha»; ele é portador de seu papel e do «sabor» poético como o fogo é «portador» da oferenda. Em resumo, deve-se ver no nome de bharata uma etiqueta mítica e simbólica, resumindo sem dúvida uma tradição de escola particular, e nenhum jornalista da época não nos transmitiu o nome dos cigarros preferidos de bharata nem de seu esporte favorito nem se ele era do instituto.

A Doutrina

Entre as escolas por vezes divergentes que fundavam sobre a autoridade de bharata, do «Muni» como se chama frequentemente, a mais compreensiva é aquela dita «do Sabor (do rasa)». Sua doutrina é desenvolvida no Agni-Purana, nos tratados de bhoja, no Dasha-Rupa e sobretudo o Sahitya-Darpana («Espelho da Composição) do qual resumo aqui algumas definições.

O Sabor.

A essência da poesia (aí compreendido o teatro) é o Sabor (rasa). Chama-se Sabor a percepção - percepção imediata, por dentro, de um momento ou de um estado particular da existência, provocada pela disposição dos meios de expressão artística. Ela não é nem objeto nem sentimento, nem conceito; ela é uma evidência - evidência imediata, uma gustação da vida mesma, uma pura alegria de saborear a sua própria substância em comungando com o outro, o ator ou o poeta. O Sabor se diferencia segundo os estados ou modos de existência (Bhavas) do qual é a percepção «sobrenatural» e desinteressada. Tecnicamente enumera-se oito ou dez «Sabores» nomeados, por metáforas, segundo os sentimentos ou melhor os regimes psico-fisológicos (Bhavas) dos quais elas são noções intuitivas: erótica, cômica, patética, furiosa, heroica, terrífica, repugnante, maravilhosa; mais, em alguns autores, os Sabores calmo e familial. Toda obra poética deve comportar um Sabor dominante; os «Sabores misturados» caracterizam certos gêneros inferiores.

As Manifestações.

A palavra Bhava (Sentimento, estado geral) designa também o conjunto das Manifestações de cada um destes modos. Há portanto oito ou dez Manifestações permanentes, constantes para uma obra ou por um personagem dado; elas são definidas pelo emprego de tais ou tais meios de expressão (v. em seguida); elas «manifestam» para os olhos e as orelhas o Sabor do poema e a suscitam no espectador. Em segundo lugar, trinta-três Manifestações transitórias exprimem todos os sentimentos de estados psíquicos incidentes que variam e nuançam o Sabor fundamental; enfim oito ou dez manifestações verídicas (como lágrimas, riso, transpiração) exprimem o sentimento dominante quando se tornam bastante forte para submeter o homem a ações fisiológicas que são consideradas, pela convenção cênica, fornecer signos indubitáveis do estado interior do personagem.

Os meios de expressão

O estado interior do ator é manifestado por quatro meios (abhinayas): gesto, voz, costume e decoro, expressões corporais. À voz se juntam a música e o canto.

Os estilos.

Há quatro estilos dramáticos (vritti, lit. «jeito, maneira de fazer»): a «maneira verbal» onde a plavra desempenha o principal papel, convindo a assuntos religiosos, aos sentimentos calmos; a «maneira heroica» ou «grandiosa», convindo aos assuntos épicos e guerreiros; a «maneira da cabeleira», maneira graciosa tirando seu nome de um gesto de Vishnu prendendo seus cabelos depois de um combate, convindo aos sentimentos amorosos; e a «maneira violenta» ou «fantástica», onde todas as espécies de artifícios de maquinaria são postos em obra, e que convém aos dramas mágicos, aos combates violentos e sobrenaturais.

As noções de Sabor, Manifestação, Meio de expressão, estilo e outras ainda, foram enumeradas, subdivididas, numeradas, etiquetadas de nomes de divindades e cuidadosamente classificadas pelos teóricos hindus. Estas classificações não têm nenhum valor de lembrete e são particularmente adaptadas ao ensinamento oral. O poeta ou ator que as possui pode assim, de um golpe de vista interior, abarcar todas as possibilidades de seu métier, e todo este saber, em aparência fastidioso e complicado, não tem outra meta senão liberar o artista da pobreza das fantasias individuais.

A Tradução

Não se traduziu até aqui em línguas europeias senão alguns dos capítulos mais técnicos, e os menos utilizáveis para os Ocidentais, do Natya Shastra (salvo alguns fragmentos deste primeiro capítulo traduzido por Sylvain Lévy   no Teatro indiano com a única finalidade de ilustrar a «piedosa credulidade dos indianos» (mas, diz ele, «a crítica europeia não poderia disto se contentar»). Li e tentei traduzir este texto com todo um outro espírito, pensando, à maneira dos orientais, que um texto é feito para servir o homem e não para o escravizá-lo. Tentei portanto dele tirar o máximo de sentido, não hesitando em render seu pleno valor etimológico a certas expressões cujo sentido certamente se enfraqueceu para o leitor hindu hoje em dia. O problema da tradução dos nomes mitológicos é quase insolúvel, sua solução dependendo dos conhecimentos e das associações de imagens de cada leitor; assinalei nas notas cada caso particular, dando sempre a palavra sânscrita. É lamentável que não possuamos o comentário de Abhinavagupta   para os primeiros capítulos do Tratado.