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Gregório Magno / Saint Gregory the Great / Gregório I / Gregory I / Grégoire le Grand

  

No século VI, o veio da antiga cultura romana parece quase esgotado. Os Padres latinos haviam prolongado sua duração explorando-o em benefício do pensamento cristão, mas, nessa época, o império romano em que nascera e que era como que seu meio natural acaba de se desagregar. O nome deste último representante é, então, o do papa Gregório I, cujo gênio de organizador levou-o a ser cognominado Gregório Magno (540-604). Nascido de uma família patrícia de Roma, herdou, como que por direito de nascimento, a cultura tradicional de seu país, e sua obra traz o cunho disso. O extraordinário sucesso de seus escritos deve-se, no entanto, muito mais à sua perfeita adaptação às necessidades da Igreja. Reformador da liturgia e do canto de igreja, que ainda hoje se chama "canto gregoriano", escreveu um Liber regulae pastoralis, sobre os deveres de um pastor cristão, que devia ser traduzido em anglo-saxão por Alfredo já no fim do século IX e tornar-se, assim, um dos mais antigos monumentos da prosa inglesa. Seus Diálogos, que são, na realidade, quatro livros de legendas hagiográficas e seus dois Livros de Moralia in Job, um comentário alegórico da Escritura em que dominam as preocupações morais, foram imensamente lidos, explorados e citados durante a Idade Média. Muito embora a influência dos Antigos não esteja ausente deles, não se deveria representar Gregório Magno como um humanista. Didier, arcebispo de Vienne, na Gália, abalado pelos progressos da ignorância à sua volta e não dispondo talvez de ninguém para fazê-lo em seu lugar, tomara o partido heroico de ensinar ele mesmo gramática, sem dúvida com o Comentário dos poetas clássicos de que era inseparável. É preciso crer que a coisa causou escândalo, porque Gregório foi informado disso. A carta veemente que escreveu a Didier surpreende, mesmo quando se sabe quão profunda era, então, a decadência das Letras, Gregório exprime nela a esperança de que se trate apenas de uma notícia falsa e que o coração de Didier não se tenha deixado surpreender pelo amor às letras profanas. Como crer que um bispo pudesse discorrer sobre a gramática (gram-maticam quibusdam exponeré)? Os mesmos lábios não poderiam celebrar, ao mesmo tempo, Júpiter e Jesus Cristo! É grave, é abominável que bispos declamem o que não é decente nem mesmo para um leigo (Et quam grave nefan-dumque sit episcopis canere quod nec laico religioso conve-niat ipse considera). Certamente, Gregório não pensa aqui que seja imoral aprender latim. Seu verdadeiro pensamento, tal como se exprime em seu Comentário sobre o I Livro dos Reis (5, 30), é que só se devem estudar as artes liberais para se compreender a Escritura, sendo seu estudo com esse fim uma coisa indispensável. Deus mesmo nos oferece esses conhecimentos como uma planície a atravessar antes de galgar os píncaros das Santas Letras. Portanto, não consideremos Gregório um obscurantista; mas, quando tudo está dito, reconheçamos que carece de entusiasmo. O prefácio de seus Moralia in Job já coloca o problema, frequentemente debatido pelos gramáticos da Idade Média, de saber qual a norma do uso latino para um cristão: a gramática dos escritores clássicos ou a que o texto latino da Bíblia impõe? Gregório opta decididamente pela segunda alternativa. O que é solecismo ou barbarismo para um mestre de gramática latina não deve assustar um cristão que comente as Escrituras, pois o próprio texto sagrado autoriza essas fórmulas aberrantes: indignum vehementer existimo ut verba caelestis oraculi restringam sub regulis Donati. Neque enim haec et ullis inteipretibus in scripturae sacrae auctoritate servatae sunt. Protesto que veremos retomado, contra os puristas de seu tempo, por Smaragde de Saint-Michel e por João de Garlandia. Mas a seguinte observação de Gregório também merece ser meditada: "Já que é da Escritura que nossa exposição tira sua origem, convém que esse filho se assemelhe à sua mãe." Assim, um latim cristão tendia naturalmente a suceder ao latim clássico, e isso desde o fim da época patrística. É uma das numerosas ironias da história que tenha partido precisamente desse adversário das Belas-Letras o imenso movimento de cultura literária que, pela civilização anglo-saxã, irá invadir progressivamente o Ocidente. [Excertos de Etienne Gilson, FILOSOFIA DA IDADE MÉDIA]

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