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creatio ex nihilo / ex nihil / creatio

  

Antes de examinar as diferentes citações que se seguem sobre o tema "criação" é importante ter em mente que o termo "criação" enseja pelo menos três acepções, referentes ao Criador, à Criatura e ao Criar, ou seja, uma acepção refere-se à criação enquanto processo, outra enquanto resultado, e uma terceira enquanto poder ou causa. As citações que se seguem devem ser examinadas tendo como questão de fundo "que criação está sendo contemplada?", para que sejam devidamente apropriadas.


Frithjof Schuon

A criação (ou manifestação) está rigorosamente implicada na infinidade do Princípio... O mundo não deixa de existir, posto que é um aspecto possível e, portanto, necessário da necessidade absoluta do Ser. [Unidade Transcendente das Religiões]

Ananda Coomaraswamy

O que denominamos o processo de criação do mundo é.... um jogo (krida, lila, paidia, dolce gioco) que o espírito joga consigo mesmo, e assim como o raio de sol "joga" sobre o que quer que ilumine e acenda, embora não afetado por seus aparentes contatos. (O mundo sensível é) a consequência da consciência do Espírito da "imagem-de-mundo diversificada pintada por ele mesmo na vasta tela dele mesmo" (Sankara  ). Não é por meio deste Todo que ele conhece ele mesmo, mas pelo seu conhecimento dele mesmo que ele se torna este Todo.

O Pai-Dragão permanece um Pleroma, nem um pouco diminuído pelo que ele exala do que aumentado pelo que ele repossui. [Hinduísmo e Budismo  ]

Mestre Eckhart

O medieval denominava o falar da criação como matéria-prima, o nada que, no horizonte do ser da criação subsumido pelo ontologicum da filiação divina, é expresso na formulação ex nihilo sui et subiecti, que por sua vez foi chamado de potentia oboedientialis. Aqui a palavra potentia se entende não como possibilidade vazia da não contradição lógica do ens rationis, mas sim como a vigência, o vigor do gosto e da satisfação da acolhida, da receptibilidade da liberdade geradora de Deus. Essa receptibilidade, por sua vez, ela mesma como e na criatura, já é o dom de Deus, cuja intimidade da interioridade é denominada de Um, a se abismar, a se perder de vista para dentro da geração e processão trinitária, isto é, para dentro da sua Abgeschiedenheit. Se é assim, então o nada, o nihil sui et subiecti, a matéria-prima é propriamente a liberdade, o nada ser, nada ter, nada poder, nada querer, nada saber a não ser toda e inteiramente ser apenas a disponibilidade de e para a liberdade dos filhos de Deus. Em Eckhart  , nada é a graça de ser. É obediência, isto é, ob-audiência, a ausculta, a receptividade da audição, atenta, dócil e grata da percussão da doação da vida divina. [Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos "Sermões Alemães" de Mestre Eckhart]

Steven Wasserstrom

Corbin   foi muito mais por treino e prática um filósofo do que os historiadores Scholem   e Eliade  . Porém, muito ‘mais’ do que um ‘mero’ filósofo acadêmico da religião, Corbin se identificava como um ‘filósofo profético’. Uma de suas tarefas primárias era, assim, apresentar nada menos do que uma ‘filosofia profética’, uma historiosofia, uma história visionária deste e de outros mundos, recorrendo constantemente, voltando sempre através de Weltalter, as Eras do Mundo.

A recorrência eterna, com seus mitos do mundo seguindo ciclicamente a mundos anteriores, imediatamente depôs a doutrina monoteísta da criação ex nihilo, a criação vinda do nada em um momento no tempo. Creatio ex nihilo, para Corbin, torna-se o mundo como fruto da imaginação.

Pode-se ir até o ponto de se perguntar se não haveria necessariamente uma correlação entre a ideia de uma creatio ex nihilo e a degradação de uma imaginação ontologicamente criativa e se, como consequência, a degeneração da imaginação tornada uma produção da fantasia somente do imaginário e do irreal não seria uma marca do nosso mundo laicizado, cujos fundamentos foram determinados pelo mundo religioso que o precedeu e que foi dominado por essa ideia precisa que caracteriza a criação.

Corbin não deixa questionamentos nesta questão: "A Criação não é ex nihilo, porém uma teofania. Como tal, trata-se do Imaginário." A criação real se dá no seio do divino, em uma:

... história intradivina, não uma História no senso comum da palavra, mas uma História atemporal eternamente acabada e eternamente começante, portanto simultânea e eternamente toda inteira (sirnul tota) sobre todas as formas e em todas as etapas da sua autogeração como Deus pessoal.

Scholem já havia feito alusão à transformação desta creatio ex nihilo da concepção rabínica para o conceito da Cabala   em Major Trends in Jewish Mysticism   defendendo a noção de que "a criação vinda do nada torna-se, portanto, o símbolo da emanação". Ele começou sua palestra de 1956 em Eranos, "A Criação do Nada e a Autocontradição de Deus" com uma citação de Eliade sobre a ausência geral de um conceito de creatio ex nihilo na História das Religiões de modo geral. Scholem teceu comentários, de forma um tanto contundente, sobre a singularidade deste conceito judaico. A citação que Scholem fez de Eliade baseou-se em sua celebrada e muitas vezes lembrada em citações, ênfase nos mitos da criação como rituais de repetição.

Creatio ex nihilo, um conceito fundamental na história do pensamento monoteísta, foi assim marginalizado pelos três historiadores das Religiões. Cada um deles o fez pela seletividade, isto é, uma escolha de olhar consistentemente para outro lado em seus assuntos específicos. A ênfase resultante foi uma espécie de preferência gnóstica por um certo cenário alternativo mítico. Em lugar de um Deus pessoal desejando a criação do nada em um momento do tempo, Corbin e Eliade preferiram, ao contrário, o processo cíclico de nascimento e de renascimento no seio da vida divina o processo da teogonia  , para usar a expressão favorita de Schelling  . Embora não haja a mínima dúvida para se acreditar que tal era a preferência básica das tradições esotéricas, não fica tão claro que tais esoterismos fossem centrais aos monoteísmos em si. Em outras palavras, a centralização no esoterismo, como enfatizada pelos historiadores das Religiões, desviou do curso normal as reivindicações que os próprios monoteísmos tinham como norma. Ao tirar de Deus o seu papel de Criador em tais religiões, puderam colocar em Seu lugar a Natureza, ou a Vida, ou o Cosmo. Para fazer este movimento, eles se aproximaram da Naturphilosophie  . Neste ponto, Scholem se distanciou de Eliade e Corbin. [Excertos da tradução em português de Dimas David   Santos Silva, do livro de Steven Wasserstrom  , Religion after Religion]

Ullmann

A definição clássica de creatio reza assim: Creatio est productio rei ex nihilo sui et subjecti. Ex nihilo sui significa que Deus não recorreu a matéria preexistente. ... et subjecti quer dizer que Deus não tirou nada de si, não se depauperou, não se despotencializou. [Ullmann  ]


Elevando-se acima de todo o ser (epékeina tès ousías), o Uno não se isola dos seres como tais. “Ele não é nenhum dos entes, e contudo ele é todos ao mesmo tempo; não é nenhum deles, porque são posteriores a ele; é todos, porque são derivados dele. Ele tem o poder de produzir todos (...)” [En. VI, 7, 32, 13-15]. Em outras palavras, ele é dynamis tôn pántôn [En. III, 8, 10, 1]. Essa produção ou emanatio não se diferencia, essencialmente, da noção cristã de creare ex nihilo, conquanto haja diferenças nalguns pontos: processão sucessiva e mediadora do Nous e da Alma do mundo para o surgimento dos seres e eternidade do mundo. Porém, a excelsitude do Uno fica resguardada: “O Bem é a causa de todas as coisas, sem se misturar com elas; ele está acima de todas as coisas” [En. V, 5, 13, 35]. Não era desconhecida de Plotino   a doutrina criacionista, devido ao seu convívio com Amônio   Saccas [“Che Ammonio non solo potesse, ma dovesse conoscere la dottrina della creazione è fuori dubbio, dato che nacque e fu educato in una famiglia cristiana e dato che in Alessandria già con Filone la dottrina aveva avuto larga risonanza” (REALE, Giovanni, Storia della Filosofia Antica, 9. ed. (Milano, 1992), v. IV, p. 468). Na época de Plotino, a criação era expressa pelo substantivo grego poíêsis o qual deriva do verbo poiein. No Credo niceno-constantinopolitano. Deus criador é denominado Theòs poiôn, isto é, o criador fez tudo do nada. Ora, o Uno, archê de tudo. também não recorreu a matéria preexistente nem se depauperou ao dar origem às coisas.]. Esse fato, sem dúvida, terá influído na complexa síntese do seu pensamento, elaborado, em grande parte, na cidade de Roma, onde teve diuturno contato com o cristianismo [Indubitavelmente, Plotino conhecia os atributos dados pelos cristãos a Deus. Nas Enéadas encontram-se reflexos evidentes disso, v.g., quanto à criação consciente por parte do Uno. A esse respeito é elucidativo este comentário: “Rien d’inconscient ni d’inerte en l’Un. C’est en ‘pleine maîtrise de soi’ (En. VI, 8, 13, 10) qu’il produit” (TROUILLARD, Jean, Im procession plotinienne (Paris, 1935), p. 77). Cf. etiam En. V, 4, 4, 16-17). “II est donc difficile de croire que ce qu’il (l’Un) fait ou ce qui sort de sa puissance lui échappe de quelque façon que ce soit” (id., ibid., p. 79).]. Ao menos pela rama o licopolitano conhecia a doutrina cristã [“Notre philosophe (= Plotin), rappelons-le encore, n’a pas été initié à la vie intime des communantés chrétiennes; il les connaît du dehors et assez en gros” (GUITTON, Jean, Le temps et l’éternité chez Plotin et Saint Augustin  , 4. éd. (Paris, 1971), p. 87).]. [Ullmann:20-21]

Christophe Andruzac

Prefere evitar o termo «criação», que se refere em geral aos dados das tradições religiosas, onde exprime a dependência profunda do coração do homem religioso: ora a dependência na ordem da vida espiritual (inteligência e amor) é muito distinta da dependência ao nível do ser. Esta distinção, que depende daquela, mais radical, entre ser, viver e pensar (esse, vivere et intelligere), não sendo mais percebida pelo conjunto do que se poderia chamar a «filosofia moderna» desde Descartes  , cremos dever voltar ao termo técnico proposto por Tomás de Aquino  , o esse creatum .

Outro ponto deveras importante que necessita reflexão é "criação de que?": universo, cosmo, mundos, homem universal, ser humano, Filho de Deus. No caso do ser humano, trata-se da criação do hílico, do psíquico, do pneumático, do Filho de Deus. Muita reflexão a ser devidamente ordenada para ser justamente pensada, ou seja, pensada com justiça.

Sérgio Fernandes

Em geral, não se tira um coelho de uma cartola vazia, a não ser por criação ex nihilo. Dito assim, o apelo prestidigitador aos espetáculos de mágica disfarça a poderosa linhagem dessa tese venerável: seu pedigree é platônico. Isso, na minha visão das coisas, diz tudo sobre sua altíssima semelhança com a Verdade.

A primeira parte da tese (não se tira um coelho de uma cartola vazia) é a menos difícil de ser compreendida, pois foi sobejamente elaborada e difundida na Filosofia por Kant   e os kantianos e, na Ciência de hoje em dia, pela síntese neodarwinista. Já a segunda parte (a não ser por criação a partir do nada) inclui uma ideia que já era escandalosa, na antiguidade clássica, ao ser apresentada aos gregos pelos representantes das tradições judaico-cristãs (nesse ponto não faço distinção entre as tradições que, posteriormente, foram consideradas heréticas ou heterodoxas). Entendo que, a partir do nada, a criação do que quer que seja não pode ter o que quer que seja a ver com a ideia ("decaída") de tempo. [Excluo as ideias mais antigas de temporalidade cíclica, por não passarem de "imagens móveis da eternidade".] A partir do nada, a criação do que quer que seja implica a criação do próprio tempo. Há, de fato, um sentido, sutilíssimo, em que pretendo resgatar a noção de criação a partir não do nada, mas da compreensão dos simulacros da Existência. Mas este sentido tampouco tem a ver com o tempo.

Pois muito mal. E por essas e outras razões que a tese em questão não tem semelhança somente com a verdade, mas também com falsidades. Tem, por exemplo, levado a Mente, o Pensamento e a Linguagem (o Instrumento) a ver nela alguma semelhança com várias espécies de falsidade, dentre elas o chamado "argumento do conhecimento criador" (só se conhece aquilo que se cria, verum factum, etc.). Ora, afirmo que o chamado "argumento do conhecimento criador" é um contra-senso. E tamanho é o contra-senso, na minha visão dessas coisas, que não vejo porque ser delicado no tratamento deste assunto. Desincumbo-me dele logo aqui, de maneira o mais curta e grossa possível. Em primeiro lugar, só há verdadeira criação ex nihil: qualquer outra coisa é contrafação, ou melhor, transformação ou artesanato, não criação. Logo, o "verum factum" só poderia significar algo como "só conheço o que transformo" ou "artefaço", jamais "só conheço o que crio". Em segundo lugar, ainda que se tome "criação" no sentido vulgar, ou seja, no sentido de "transformação", seu uso no suposto "argumento" (do "conhecimento criador") trai variadas confusões, das quais só me darei ao trabalho de indicar as principais. Uma delas é a confusão entre "teoria" e "prática"; outra, mais grave, a confusão entre conhecer e criar. [SER HUMANO]