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kosmos aisthetos

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

As sensações constituem a fonte mais comum de nossos erros. Eis o motivo apontado por Plotino  : "Estamos acostumados, olhando as coisas daqui (deste mundo), a separar o pensante e o pensado" (En. V, 9, 5, 10). A não-identidade entre sujeito e objeto pode levar-nos a enganos.

Porém, há mais. Plotino assevera que o mundo sensível como tal é um "mentiroso". Por quê? Sua resposta soa assim: "A matéria é um fantasma em ato (energeia [dativo!] eidolon), portanto, uma mentira em ato, isto é, uma verdadeira mentira" [1]. Ela é como uma imagem vista num espelho (Cf. En. III, 6, 13, 31 s). A imagem deste mundo semelha apenas um reflexo embaçado do arquétipo: é methexis, skia kai eikon. Por isso, diz, com acerto, Dominic O’Meara  : "A matéria não é, portanto, uma causa independente; ela deriva, em última análise, como tudo o mais, do Uno" [2]. Apesar de ser mentiroso, "nosso mundo tão belo não é senão sombra e imagem" (skia kai eikon) (En. III, 8, 11, 29).

Com essas palavras, Plotino desfere um golpe à admiração que ele mesmo devotava à beleza do universo, porquanto afirma, sem rebuços: "Que outra imagem poderia ser mais bela do que este mundo?" (En. II, 9, 4, 27) Por outra, Plotino afirma que, "graças ao seu ser-imagem, referida à sua origem, este mundo é o melhor de todos os mundos" [3].

Porém, ao mesmo tempo que é mister admirar a beleza do mundo, torna-se imperioso não prender-se às suas aparências de Circe enganadora. Por isso, apregoa o aphele panta.

Por ser o mundo sensível uma mentira, ele não se basta. E a prova de sua insuficiência está na permanente mudança, no contínuo fluir. O mundo material apresenta-se como um mendigo, que vive de esmolas. Tudo nele é adventício. A beleza, a bondade, a unidade, o ser, tudo quanto nele há tem-no através de outrem. Em suma, é dependente. "As coisas sensíveis são o que delas se diz, isto é, por participação, pois a natureza, que é seu substrato, traz de outrem (allothen) a forma (...)" (En. V, 9, 5, 37-38). Em outro passo, lemos: "A matéria não possui e não recebe a forma, como se essa fosse a sua vida e o seu ato, mas a forma provém de outro lugar (allachothen: En. VI, 2, 23-24)". E, ainda: "Quando (o sábio) vê as coisas belas de cá (deste mundo) esvaírem-se, então ele compreende, plenamente, que elas têm de outra fonte (anoothen) a beleza que o fascina" (En. VI, 7,31,28-29).

Devido à participação (methexis), o mundo é belo, mas não deixa de ser mera imagem que perde seu brilho, quando olhado com olhos que contemplaram o arquétipo eterno. O nosso mundo nada mais constitui do que uma imitação, um vestígio: "Do alto (de lá = ekeithen), provém tudo, mas lá tudo é mais belo" (En. V, 8, 7, 17-18).

Ainda que admire o universo como algo belo, conforme aludimos, Plotino insiste em que não deve o homem fixar-se nele. Mas, por outro lado, seria impiedade e injustiça desprezá-lo, como o faziam os gnósticos  , porquanto não se podem procurar "na segunda categoria (= dos seres criados) as qualidades primárias (= do criador)" (En. III, 2, 7, 3: med’en deuterois zetein ta prota). Faz-se mister admirar as belezas, mas, ao mesmo tempo, esforçar-se constantemente por delas afastar-se. Estamos ante uma tensão interior, com duas forças antagônicas lutando entre si. As belezas deste mundo devem ser um trampolim, para que o homem se eleve ao puro modelo: "Quando se admira uma cópia, é ao modelo que vai a admiração" (En. V, 8, 8, 11-13). Satisfazer-se com este mundo representa, para os homens, esquecer o seu princípio e esquecer-se de si mesmos: "(...) são como crianças que, afastadas desde cedo de seus pais e educadas largo tempo longe deles, não se conhecem a si, nem aos seus pais (En. V, 1,9-11).

Se o mundo da matéria é enganoso, onde procurar a verdade? Na origem, na causa de tudo, que é o Uno, o theos, o Bem-em-si. Isso se consegue, atingindo o verdadeiro eu interior, pela renúncia radical a tudo, fruto do imperativo ético, consubstanciado no famoso aphele panta! (En. V, 3, 17, 38) O suicídio não está incluído nessa renúncia a tudo: "Não se deve agir assim!" (En. I, 9, 1, 10), porque poderia ser efeito da angústia, dor ou ira. Plotino tolera-o, no entanto, quando o infortúnio representa um peso (para os prisioneiros de guerra): "Se a desventura lhes é um fardo, podem deixar a vida" (En. I, 4, 7, 44). Aqui Plotino assemelha-se aos estoicos, os quais, em se tornando a vida insuportável, propunham, abertamente, o suicídio.

Pela renúncia a tudo, o homem volta-se para o seu interior. Isso significa uma simplificação (haplosis) sempre maior e uma assemelhação com o Uno, que, para Plotino, é a meta da vida humana. A lenta ascensão ao Primeiro Princípio constitui a dialética plotiniana, para chegar, como diz Marsílio Ficino  , à visio divinae pulchritudinis. [Ullmann  :66-69]


LÉXICO: KOSMOS

Observações

[1En. II, 5, 5, 23-24. Em grego consta o substantivo pseudos, o qual quer dizer mentira, falsidade, opondo-se a aletheia. HARDER/BEUTLER/THEILER traduzem pseudos por Trug, o que significa ilusão. FAGGIN escreve menzogna (= mentira).

[2O’MEARA, Dominic. Plotin - une introduction aux Ennéades (Fribourg Suisse, 1992), p. 104.

[3BEIERWALTES, Werner. Pensare l’Uno (Milano, 1991), p. 87.