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bondade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O amor à sabedoria e o amor à bondade, caso se resolvam nas atividades de filosofar e de realizar boas obras, têm em comum o fato de que cessam imediatamente, – cancelam-se, por assim dizer – sempre que se presume que o homem pode ser sábio ou ser bom. Sempre houve tentativas de dar vida ao que jamais pode sobreviver ao momento fugaz do ato, e todas elas sempre levaram ao absurdo. Os filósofos da Antiguidade tardia, que exigiam de si mesmo serem sábios, eram absurdos ao afirmar serem felizes quando queimados vivos dentro do famoso Touro de Falera. E não menos absurda é a exigência cristã de ser bom e oferecer a outra face, quando não é tomada como metáfora, mas tentada como um autêntico modo de vida.

Termina aqui, porém, a semelhança entre as atividades originadas no amor à bondade e no amor à sabedoria. É verdade que ambas se opõem, de certa forma, ao domínio público; mas o caso da bondade é muito mais extremo nesse particular, e, portanto, é mais relevante em nosso contexto. Só a bondade deve esconder-se de modo absoluto e evitar toda aparição, pois do contrário é destruída. Mesmo quando o filósofo decide, com Platão, deixar a “caverna” dos assuntos humanos, não precisa esconder-se de si mesmo; pelo contrário, sob o céu das ideias não apenas encontra as verdadeiras essências de tudo quanto existe, mas também a si próprio, no diálogo entre “eu e mim mesmo” (eme emauto), no qual Platão aparentemente via a essência do pensamento [Encontra-se essa expressão passim em Platão (cf. esp. Górgias, 482)]. Estar em solitude [solitude] significa estar consigo mesmo; e, portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mais solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia.

O amante da bondade, porém, jamais pode permitir-se viver uma vida solitária [solitary]; e, no entanto, sua vida com os outros e para os outros deve permanecer essencialmente sem testemunhas e privado, acima de tudo, da companhia de si próprio. Não é um homem solitário, mas desamparado [lonely]; embora conviva com outros, deve ocultar-se deles e não pode sequer confiar a si mesmo o testemunho do que está fazendo. O filósofo sempre pode contar com a companhia dos pensamentos, ao passo que as boas ações não podem ser companhia para ninguém; devem ser esquecidas no instante em que são praticadas, porque até a memória delas destruiria sua “bondade” Além disso, o ato de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em pensamentos, e os pensamentos, como todas as coisas que devem sua existência à recordação, podem ser transformados em objetos tangíveis que, como a página escrita ou o livro impresso, se tornam parte do artifício humano. As boas obras, por deverem ser imediatamente esquecidas, jamais podem tornar-se parte do mundo; vêm e vão sem deixar vestígios. Elas realmente não são deste mundo.

É esse caráter não-mundano inerente às boas obras que faz do amante da bondade uma figura essencialmente religiosa e torna a bondade, como a sabedoria na Antiguidade, uma qualidade essencialmente não humana e sobre-humana. E, no entanto, o amor à bondade, ao contrário do amor à sabedoria, não se limita à experiência de poucos, da mesma forma que o desamparo [loneliness/Verlassenheit], ao contrário da solitude, está ao alcance da experiência de todos os homens. Em certo sentido, portanto, a bondade e o desamparo têm muito mais relevância para a política que a sabedoria e a solitude; mas somente a solitude pode constituir um autêntico modo de vida, na figura do filósofo, ao passo que a experiência muito mais geral do desamparo está em tal contradição com a condição humana da pluralidade que simplesmente não pode ser suportada durante muito tempo: requer a companhia de Deus, a única testemunha imaginável das boas obras, para que não venha a aniquilar inteiramente a existência humana. A além-mundanidade da experiência religiosa, na medida em que é realmente a experiência do amor no sentido de uma atividade – e não a outra, muito mais frequente, da passiva observação de uma verdade relevada –, manifesta-se dentro do próprio mundo; como todas as outras atividades, permanece neste mundo e tem de ser realizada dentro dele. Mas essa manifestação, embora apareça no espaço no qual outras atividades são realizadas, e dependa dele, é de uma natureza ativamente negativa; por fugir do mundo e esconder-se de seus habitantes, nega o espaço que o mundo oferece aos homens e, principalmente, aquela região pública desse espaço onde tudo e todos são vistos e ouvidos por outros.

Como um modo consistente de vida, a bondade, portanto, não é apenas impossível nos confins do domínio público, mas é até destruidora dele. Talvez ninguém tenha sido mais agudamente consciente dessa qualidade ruinosa da bondade quanto Maquiavel, que, em famosa passagem, ousou ensinar aos homens “como não serem bons” [O príncipe, Capítulo 15]. Não é preciso acrescentar que ele não disse nem pretendia dizer que se deva ensinar aos homens como serem maus; o ato criminoso, embora por outros motivos, deve também procurar não ser visto nem ouvido por outros. O critério da ação política, para Maquiavel, era a glória, o mesmo critério da Antiguidade Clássica; e a maldade, como a bondade, não pode assumir o resplendor da glória. Assim, qualquer método pelo qual “um homem possa realmente conquistar o poder, mas não a glória” é mau [Ibid., Capítulo 8]. A maldade que deixa de estar escondida é impudente e destrói diretamente o mundo comum; a bondade que deixa de estar escondida e assume um papel público deixa de ser boa: torna-se corrupta em seus próprios termos e levará essa corrupção para onde quer que vá. Assim, para Maquiavel, o motivo pelo qual a Igreja tornou-se uma influência corruptora na política italiana foi sua participação nos assuntos seculares como tais, e não a corrupção individual de bispos e prelados. Para ele, a alternativa apresentada pelo problema do domínio religioso sobre o domínio secular era inevitavelmente esta: ou o domínio público corrompia o corpo religioso e, consequentemente, tornava-se corrupto, ou o corpo religioso permanecia não corrompido e destruía completamente o domínio público. Uma Igreja reformada constituía, portanto, um perigo ainda maior aos olhos de Maquiavel, que observou com grande respeito, mas com apreensão ainda maior, o reflorescimento religioso do seu tempo, as “novas ordens” que, por “salvar a religião de sua destruição por conta da licenciosidade dos prelados e dos chefes da Igreja” ensinam as pessoas a serem boas e a não “resistir ao mal” –, em decorrência do que “os governantes perversos podem fazer todo o mal que quiserem” [Discursos, Livro III, Capítulo I]

Escolhemos o exemplo reconhecidamente extremo de realizar boas obras – extremo porque essa atividade não encontra guarida nem mesmo no domínio da privatividade – para indicar que os juízos históricos das comunidades políticas, mediante os quais cada uma delas determinava quais atividades da vita activa deveriam ser admitidas em público e quais deveriam ser ocultadas na privatividade, podem corresponder à natureza dessas mesmas atividades. Ao levantar a questão, não pretendo empreender uma análise exaustiva das atividades da vita activa, cujas articulações têm sido curiosamente negligenciadas por uma tradição que a considerou basicamente do ponto de vista da vita contemplativa, mas tentar determinar, com alguma segurança, o seu significado político. [ArendtCH:C10]


LÉXICO: bondade