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começo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O relato religioso apresenta-nos em conexão com o primeiro momento criador de Deus, e procura elucidar em função da ideia do ato criador a nossa possível relação com a divindade: como criaturas desse poder original.

Toda religião contém uma referência explícita a um começo. O fim das coisas, seja considerado como acontecimento catastrófico que anula a presente ordem do criado, seja considerado como sucessiva vitória e superação do mundo e portanto como fim progressivo, também ocupa o centro de toda revelação religiosa.

Entre os povos primitivos encontramos mitos que se referem à proveniência das coisas, numa estreita relação com todos os usos e costumes de tribo. Assim é que entre os trobriandenses, estudados por Malinowski, existe a crença de que os homens surgiram na superfície da terra irrompendo de um antro subterrâneo situado numa região vizinha às suas terras. A posição social e a hierarquia dos membros da comunidade dependem, segundo o mito, do orifício particular de emergência de cada qual. A ordem em que surgiram os antepassados totêmicos da tribo também determina a estruturação da hierarquia social.

Os mitos de origem determinam o estatuto mitológico da comunidade.

Entretanto, o tema da origem e do fim das coisas não se circunscreveu à fabulação mítico-religiosa dos povos, mas foi aferrado pela meditação filosófica, que desde os filósofos jônicos recebeu uma especial atenção. As cosmogonias anteriores a Sócrates desenvolvem explicitamente os conceitos de uma formação e destruição sucessiva dos mundos, de uma cíclica recorrência de momentos de construtividade e organização e de momentos de corrupção e aniquilamento.

Heráclito, uma das mais altas figuras do pensamento pré-socrático, fala-nos de uma combustão final e purificadora das coisas, que de período em período consumiría a face do criado. “O fogo virá” – diz um de seus fragmentos. [220]

Dessas referências já podemos perceber que esses dois termos extremos de origem e de fim, se bem que não explicitamente presentes em nossa consciência, desempenham um papel fundamental em nossa atitude diante da vida. A forma de nossa existência é a de viver entre esses dois polos, entre um começo e um fim individuais e um começo e um fim universais. As duas categorias do ser para o começo e do ser para o fim configuram duas atitudes específicas do nosso ambiente espiritual. Para esclarecer e ilustrar essa conexão, podemos valer-nos de elementos próprios do teatro. Os personagens que vivem diante de nós, no decurso de uma peça teatral, só existem quando a peça já começou, quando o mundo próprio do drama já teve início. O começo não é percebido pelos personagens, da mesma maneira que o fim. Só a nós, espectadores, é dado apreciar os limites extremos que circunscrevem o âmbito temporal da peça. Portanto, da mesma forma que para os personagens do drama, esses dois extremos, entre os quais se passa a vida humana, não são dados como fatos perceptíveis à nossa consciência.

Podemos perguntar se essas duas ideias que parecem provir da observação de um movimento no espaço, com seu ponto inicial e seu ponto final, podem ser validamente aplicáveis ao enquadramento do fenômeno total do mundo. Ou por outra: podemos perguntar se cabe falar num começo e num fim das coisas. Como vimos no exemplo do drama, o começo e o fim só existem para o espectador objetivo e não para o ser imerso na trama interna dos acontecimentos. Da mesma forma, podemos afirmar, no caso da existência concreta, que não é lícito portarmo-nos numa atitude exterior ao mundo, transformando-o em objeto de espetáculo, e delimitando para ele uma gênese e um apocalipse.

Aristóteles, em sua Física, afirma que o vir a ser das coisas não tem começo nem fim, constituindo uma eterna evolução. Essa ideia foi-lhe inspirada pelo fato da corrupção de uma coisa ser o início de outra. A extensão desse conceito proveniente da observação da natureza à totalidade das coisas é que lhe permitiu afirmar, por outro lado, o não começo do mundo. [VFSTM  :220-221]

LÉXICO: começo