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pensar

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Se então a primeira definição do pensamento, por sua pretendida essência – de fato, a do “conhecimento do corpo” – é inadequada ao começo e não pode produzi-lo em si, voltemo-nos em direção à segunda. Ela, apesar de seu caráter enumerativo, não nos permite, de modo mais seguro, ter acesso à essência, se a consideração da pluralidade das modalidades fundamentais do pensamento nos obrigue a conceber sua possível unidade, a qual reside em sua essência comum, idêntica à do pensamento? O problema da atribuição possível a uma mesma essência do pensamento desses diversos modos será susceptível de receber uma solução, se essa essência for a essência do entendimento?

A questão se formula concretamente como segue: as experiências vividas, notadamente, as do sentir e da imaginação serão homogêneas à intuição intelectual das naturezas simples e poderão ser reduzidas a ela? Para essa primeira dificuldade, é possível, na verdade, encontrar uma solução no próprio Descartes  : não basta supor, com efeito, que as faculdades não intelectuais do pensamento, a saber, o sentido e a imaginação, não sejam modalidades próprias desse pensamento puro, mas que intervenham tão-somente nele, de modo acidental, em resposta ao acidente – mais precisamente, o acidente da determinação do pensamento pelo corpo em razão da união. Assim seria possível compreender que o pensamento, identificado ao entendimento, fosse, todavia, suscetível de revestir modos contingentes [75] relativamente à sua própria natureza [1]. A análise eidética demonstra que o entendimento é a essência, o sentir e a imaginação acidentes, porquanto, segundo as declarações famosas da Sexta Meditação, é possível pensar sem imaginar e sem sentir, ao passo que o contrário não é possível: “esta virtude de imaginar que está em mim, enquanto difere da potência de conceber, não é, de modo algum, necessária à minha essência, quer dizer, à essência de meu espírito, pois ainda que eu não a possuísse, sem dúvida, eu permaneceria sempre o mesmo que eu sou agora” [2]. E ainda: “eu encontro em mim... as faculdades de imaginar e de sentir sem as quais posso muito bem conceber-me... por completo” [3].

Mas a problemática da Segunda Meditação desenvolve-se, por completo, no interior de uma atitude de redução que, como tal, é preciso lembrar, ignora o corpo e sua pretendida ação sobre a alma. Não é, por conseguinte, por uma construção transcendente ao fenômeno, neste caso, a determinação pelo corpo destes “tipos de pensamentos”, que são o sentido e a imaginação, que se pode explicar a inerência desses modos ao pensamento reduzido a um entendimento puro. Teremos, então, a pretensão de que é preciso aguardar a Sexta Meditação para que a dificuldade seja superada e para que o cartesianismo responda à questão imprudentemente tratada? Mas, como foi dito igualmente, a redução não é provisória, ela significa que a posição e a resolução dos problemas se fazem e devem fazer-se sobre o plano dos fenômenos, com a exclusão das construções hipotéticas da ciência ou das filosofias dogmáticas. Por conseguinte, os modos do sentido e da imaginação – ao serem considerados tais como eles mesmos se colocam e avançam mediante o poder de sua fenomenalidade própria – devem se exibidos em sua pertença ao pensamento, o qual não significa, por sua vez, nada mais do que essa fenomenalidade mesma. Portanto, tais modos são modos do pensamento, porquanto se manifestam nele, por ele, no seio dessa fenomenalidade pura que é identicamente a sua e a deles. Essa é a razão também pela qual a definição do pensamento, pela enumeração de seus modos, não estabelece, entre eles, discriminação alguma, uma vez que, circunscritos pela fenomenalidade e se exibindo todos igualmente nela, têm todos o mesmo direito.

Mais ainda, essa segunda definição do pensamento pelos modos só aparentemente se opõe à primeira: se ela – a determinação do pensamento como essência pura do aparecer, como “espírito” – não menciona sentido algum [76], nem mesmo a imaginação, é justamente porque ela procede da redução, é porque o corpo ficou de fora e, com ele, o sentido e a imaginação como faculdades psicoempíricas do homem. Mas a redução não põe entre parênteses o sentir psicoempírico a não ser para liberar o campo puro do aparecer e, no interior desse campo, o sentir e a imaginação identificados, dessa vez, com o seu puro aparecer, porém, do mesmo modo, promovidos também por ele à condição de fenômenos absolutos que escapam à redução e é, a esse título, que se integram à segunda definição, iguais em dignidade ao próprio aparecer e, justamente, como modos de seu cumprimento efetivo. [MHPsique:74-76]


LÉXICO: pensar

HEIDEGGER: denken / pensar / penser / think / Denk-würdigen / digno de ser pensado / digno de pensar / erdenken / erdichten / inventer / forger / Nachdenken / reflexão / rechnende Denken / pensamento calculador / Andenken / remémoration / rememoração / anfängliche Denken / pensar inicial / inceptual thinking / gedanken-los / carentes de pensamentos / sem-pensamentos / Gedankenlosigkeit / carência de pensamentos / ausência-de-pensamentos / gedanken-arm / pobres de pensamento / pobres-em-pensamento / Gedanke-flucht / fuga-aos-pensamentos / Bedenkliche / grave / pensable / Bedenklichste / gravíssimo / ce qui donne le plus à penser

Observações

[1É especialmente a tese de M. Guéroult em sua obra monumental Descartes selon l’ordre des raisons, Paris, Aubier, 1953.

[2FA, II, p. 482 ; AT, IX, p. 58.

[3FA, II, p. 488-489 ; AT, IX, p. 62.