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monoteísmo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

A crença em um só Deus vem, na maior extensão espacial e temporal, que ocupa a cultura ou as culturas clássicas, da crença, que se fez descrença, nos deuses que nós chamamos de «deuses do paganismo». E se falo em verdade «trans-histórica da história», é porque julgo que o nosso presente é, de algum modo, presença daquele passado, e como presença daquele passado, também suponho que a maioria dos homens de hoje não ascende à fé em Deus sem passar por certa modalidade de crença nos deuses, em deuses que, evidentemente, não são bem aqueles, mas são quase aqueles. A chamada «exegese alegórica» da mitologia talvez já tenha passado de moda, mas, dentro ou fora da moda, ela nos faz entender a natureza daquele quase. Os deuses do passado ainda estão presentes na maioria das «coisas» de que se supunha que eles fossem alegoria: consistem, por exemplo, das temíveis fúrias dos elementos da [149] natureza desumana e das indômitas paixões da alma humana. Basta que o homem se distraia, para que a divindade nelas reencarne e como divindade reviva nelas. Há mais; mas, por ora, isso nos basta. O pavor diante do que não podemos prever e dominar pode fazer que os mais renitentes incréus dobrem os joelhos e baixem a cabeça até o solo, em súplica que nem acode aos lábios, a uma Potência superior às potências assoladoras de nós mesmos e da nossa ambiência natural, a isto me referia ao dizer que «a maioria dos homens de hoje não ascende à fé em Deus, sem passar por certa modalidade de crença nos deuses». O pavor e a angústia, a ameaça que pende sobre a nossa existência, o medo de deixar de ser o que se veio a ser, desmente, então, a má-fé, pela expectativa ansiosa da presença tranquilizadora do que, certamente, não é fator humano, ou só humano, de nossa humanidade. Mas esses quase-deuses, que nos mostram a sua face maléfica, pelas tormentas que avassalam a natureza e o homem, também se mostram pela sua face benéfica. A infrene criatividade da terra, fecundada pelas águas do céu, as paisagens misteriosas, feitas pelo que se supõe não ter ou não ser mistério nenhum, visões da Lonjura do horizonte que em nós se transmutam em lembranças do Outrora, outro mistério que é só o da conjunção do espaço e do tempo, a distraída compreensão de que na mesma terra se fundem virgindade intocável e maternidade incontinente e transbordante, a sensação da plenitude de viver por só viver, o abandono ao sonhar por sonhar, sabendo ou não sabendo que se sonham «coisas» que estão fora da «realidade» das «coisas», das que nos impeçam os trilhos do trabalho em que agonizamos, olhar uma árvore como se pela primeira vez a olhássemos, surpreendidos por ver ou julgar ver que nunca vimos o já visto — tudo isso, que para todos já foi divino e só o é ainda para alguns poetas, muitas vezes nos converte em indesejados ou indesejáveis núncios do sagrado em que não cremos, por necessidade de concentração na luta pela sobrevivência do nada que, por diabólica tentação, se volveu em tudo. Na verdade, ainda podemos crer em deuses, por distração da concentração, por distensão da tensão, só absorvidos pelo cuidado descuidado de não pensar em nada, de só deixar que o pensamento em nós se pense. Assim, «tudo está cheio de deuses». [EudoroMito:149-150]


LÉXICO: monoteísmo; monodeísmo