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demiurgo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

No Timeu   de Platão  , deparamos com a esplêndida figura de um titã criador que com os olhos postos nos protótipos de todas as coisas, vai modelando na argila indócil do não-ser a imagem empírica do universo: é o demiurgo. Essa figura viva e pessoal, esse artista genial e introduzido por Platão como um simples “intermediário”, como um elo insubstancial entre duas ordens de coisas verdadeiramente subsistentes. Mas não é só o demiurgo que aparece, em Platão, como uma figura intermediária; o filósofo também, esse ser concreto e próximo, é tido no Banquete   como um ente transitivo e em trânsito, como qualquer coisa de superável. Esses seres que “povoam o intervalo que separa o céu da terra que são o laço que une o grande todo” têm a sua razão de ser fora de si, no universo das ideias do qual se refere todo seu afã. Seria interessante indagar o motivo pelo qual Platão sacrifica de maneira tão absoluta todas essas instâncias pessoais e, com fisionomias tão próprias, a um complexo de valores e realidades simplesmente inteligíveis, tão afastadas do nossa inferioridade vital, ou, por outras palavras, por que sacrifica a subjetividade à objetividade. Theodor Hacúer vê nesta a subordinação da ordem da intimidade à ordem da objetividade, do impessoal e do público, uma das tendências da filosofia ocidental, tendência essa que culminou no sistema de Espinosa  : o circuito da meditação em lugar de partir da pessoa, passar pelas coisas para voltar à pessoa, passa das coisas à pessoa para voltar às coisas. O filósofo em Platão, espoliado de sua realidade interior, é um ser em irradiação [216] para a plena objetividade das ideias às quais ele pretendería se unir num máximo arroubo de despojamento e desindividuação. Toda a ênfase é posta num conjunto de normas e leis objetivas do ser, diante das quais a vida em sua espontaneidade própria e em sua criatividade autônoma deve sucumbir. Tal é o prestígio que esse objetivismo exerce sobre a mentalidade geral que todos são unânimes em considerar o demiurgo uma lenda, um mito helênico, sendo as ideias a verdadeira realidade. Por que não supor o contrário? Dentro do platonismo, evidentemente, tal interpretação seria inconcebível, pois todo o seu sentido está justamente em subordinar a existência à essência, a liberdade à lei; fora, porém, dos limites de qualquer filosofia poderíamos formular essa questão se perguntarmos se não seriam as ideias o elemento lendário, os mitos e sonhos do demiurgo. Quando Nietzsche   afirma que o filósofo deve ser um criador de valores e novos mundos, o visionário de um novo destino e sentido vital, apregoa esse caráter demiúrgico de que deve estar revestido aquele que anuncia a renovação do cenário humano. A história, como trama profundo das coisas, supõe metas, valores, estimativas, enfim, uma curta transcendência como objetivo e polo de referência de todo o forcejar humano. Essa transcendência, segundo Heidegger  , não é coisa que pode resultar da observação do já existente, mas é um fim que deve ser livremente criado, posto, inventado. É por isso que Heidegger atribui ao poeta esse papel de forjador de novos sentidos, de demiurgo capaz de doar aos homens novos temas para seu exercício vital. “O poeta evoca os deuses e evoca as coisas naquilo que elas são. A poesia é fundação do ser pela palavra.”

Não poderíamos portanto conceber esses modelos ou arquétipos de que nos fala Platão como uma esfera “intermediária”, como um elo entre o mundo dos espíritos que encontrariam nas articulações desse mundo eidético a formulação de um determinado campo de possibilidades? As ideias seriam o que há de mítico na realidade, funcionando como um apelo para uma dada realização ideal, e acordando os homens para o cumprimento [217] de seu destino. Antes dessa palavra, o mundo dormitaria numa fluida indiferença, amorfo, vago e cerrado a toda transcendência. É o que a lenda nos traduz com as imagens do caos e da treva originais. Ao ecoar entretanto no seio do existente esse logos criado, essa música das esferas, delineia-se para a alma o fascínio de uma nova aventura e de novos horizontes, o possível destaca-se do meramente existente e o conforma, um possível livremente escolhido que mira do mais fundo de nossa realidade.

O demiurgo será assim esse semideus, esse herói, esse fundador capaz de despertar no coração do homem a sede de realizações inéditas. Com a instauração de uma nova tábua de valores, novos sentidos embebem as coisas, marcam-se as linhas divisórias, polariza-se o real. E assistimos então a uma nova Gênese, a um novo nascimento, a um novo batismo. [VFSTM  :216-218]


LÉXICO: demiurgo; demiourgos; artesão