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intelectual

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Bem diferente é o caso da categoria, mais popular, da obra manual e intelectual. Aqui, a conexão subjacente entre o que trabalha com a mão e o que trabalha com a cabeça é, mais uma vez, o processo de trabalho – no último caso, realizado pela cabeça, e no primeiro, por outra parte do corpo. Contudo, o pensamento, que se presume ser a atividade da cabeça, é ainda menos “produtivo” que o trabalho, embora de certa forma se assemelhe a este último, uma vez que é também um processo que provavelmente cessa apenas junto com a vida. Se o trabalho não deixa atrás de si vestígio permanente, o pensamento não deixa absolutamente coisa alguma de tangível. Por si mesmo, o pensamento jamais se materializa em objetos. Sempre que o operário [worker] intelectual deseja manifestar seus pensamentos, tem de usar as mãos e adquirir qualificação manual como qualquer outro que realiza uma obra. Em outras palavras, o pensamento e a obra são duas atividades diferentes que nunca coincidem completamente: o pensador que desejar dar a conhecer ao mundo o “conteúdo” de seus pensamentos deve, antes de tudo, parar de pensar e lembrar-se de seus pensamentos. Neste, como em todos os casos, a lembrança prepara o intangível e o fútil para sua materialização final; é o começo do processo da obra e, como o exame que o artesão faz do modelo que lhe guiará a obra, o seu estágio mais imaterial. A obra sempre requer, em seguida, algum material sobre o qual possa ser realizada e que, mediante a fabricação, a atividade do homo faber seja transformada em um objeto mundano. A qualidade específica de obra da obra intelectual deve-se à “obra de nossas mãos” tanto quanto a de qualquer outro tipo de obra.

Parece plausível, e realmente é muito comum, conectar e justificar a moderna distinção entre o trabalho intelectual e o manual com a antiga distinção entre “artes liberais” e “artes servis” No entanto, o que distingue as artes liberais das artes servis não é, de forma alguma, “um grau superior de inteligência” nem o fato de que o “artista liberal” opera com o cérebro enquanto o “sórdido negociante” opera [works] com suas mãos. O critério antigo é basicamente político. Aquelas ocupações que envolvem prudentia, a capacidade de julgamento prudente que é a virtude do estadista, e as profissões de relevância pública (ad hominum utilitatem), [1] como a arquitetura, a medicina e a agricultura, [2] são liberais. Todos os ofícios, tanto o ofício do escriba como o do carpinteiro, são “sórdidos” indignos de um cidadão completo; e os piores são aqueles que consideraríamos os mais úteis, como os dos “vendedores de peixe, açougueiros, cozinheiros, negociantes de aves domésticas e pescadores” [3]. Mas nem mesmo essas atividades são necessariamente puro trabalho. Há ainda uma terceira categoria na qual a labuta e o esforço (a operae em contraposição ao opus, a mera atividade em contraposição à obra) são pagos, e em tais casos “o próprio salário é sinal de escravidão” [4].

Embora sua origem possa ser remontada à Idade Média, [5] a distinção entre a obra manual e a obra intelectual é moderna e tem duas causas bastante diferentes, ambas, não obstante, igualmente características do clima geral da era moderna. Uma vez que, nas condições modernas, toda ocupação deveria demonstrar sua “utilidade” para a sociedade em geral, e como a utilidade das ocupações intelectuais se tornara mais que duvidosa, dada a moderna glorificação do trabalho, era apenas natural que também os intelectuais desejassem ser considerados como membros da população operária. Ao mesmo tempo, porém, e em contradição apenas aparente com esse desdobramento, a necessidade e a estima da sociedade em relação a certas realizações “intelectuais” aumentaram em uma medida sem precedentes em nossa história, com a exceção dos séculos de declínio do Império Romano. Pode convir lembrar, nesse contexto, que, em toda a história antiga, os serviços “intelectuais” dos escribas, quer atendessem a necessidades do domínio público quer a do domínio privado, eram realizados por escravos e classificados consoante a condição deles. Somente a burocratização do Império Romano e a concomitante ascensão política e social dos imperadores levaram a uma reavaliação dos serviços “intelectuais” [6]. Como o intelectual realmente não é um “operário” – que, como todos os outros operários, desde o mais humilde artesão até o maior dos artistas, esteja empenhado em acrescentar mais uma coisa, se possível durável, ao artifício humano –, ele se assemelha mais ao “criado doméstico” de Adam Smith que a qualquer outro, ainda que a sua função seja menos manter intacto o processo da vida e proporcionar sua regeneração que cuidar da manutenção das várias máquinas burocráticas gigantescas, cujos processos consomem os seus serviços e devoram os seus produtos tão rápida e impiedosamente quanto o processo biológico da vida. [7] [ArendtCH:C11]

LÉXICO: intelectualismo

Observações

[1Por uma questão de conveniência, seguirei a discussão de Cícero sobre ocupações liberais e servis de De officiis, i. 50-54. Os critérios de prudentia e utilitas ou utilitas hominum são enunciados nos §§ 151 e 155. (A tradução de prudentia, por Walter Miller, na edição da Loeb Classical Library, como “um grau mais elevado de inteligência”, parece-me enganosa.)

[2A classificação da agricultura entre as artes liberais é, naturalmente, especificamente romana. Não se deve a alguma “utilidade” especial da lavoura, como suporíamos, mas antes tem a ver com a ideia romana de patria, segundo a qual o ager Romanus, e não só a cidade de Roma, é o lugar ocupado pelo domínio público.

[3É essa utilidade para o mero viver que Cícero chama de mediocris utilitas (§ 151) e elimina das artes liberais. Novamente a tradução parece-me falha; não se trata de “profissões (...) das quais advém considerável benefício à sociedade”, mas de ocupações que, em nítido contraste com as citadas anteriormente, transcendem a utilidade vulgar dos bens de consumo.

[4Os romanos consideravam tão decisiva a diferença entre opus e operae que tinham dois tipos diferentes de contrato, a locatio operis e a locatio operarum, dos quais o último tinha papel insignificante, uma vez que a maioria do trabalho era feita por escravos (cf. Edgar Loening, Handwörterbuch der Staatswissenschaften [1890], I, 742 ss.).

[5A opera liberalia era identificada com a obra intelectual ou, antes, espiritual na Idade Média (cf. Otto Neurath, “Beiträge zur Geschichte der Opera Servilia”, Archiv fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, v. XLI [1915], n. 2).

[6H. Wallon descreve esse processo sob o reino de Diocleciano: “(...) les fonctions jadis serviles se trouvèrent anoblies, élevées au premier rang de l’État. Cette haute considération qui de l’empereur se répandait sur les premiers serviteurs du palais, sur les plus hauts dignitaires de l’empire, descendait à tous les degrés des fonctions publiques (...); le service public devint un office public”. “Les charges les plus serviles, (...) les noms que nous avons cités aux fonctions de l’esclavage, sont revêtus de l’éclat qui rejaillit de la personne du prince” (Histoire de l’esclavage dans l’antiquité [1847], III, 126 e 131). Antes desse enaltecimento dos serviços públicos, os escribas eram classificados na mesma categoria dos vigias de edifícios públicos ou mesmo daqueles que conduziam os gladiadores à arena (ibid., p. 171). Parece-nos digno de nota o fato de que o enaltecimento dos “intelectuais” tenha coincidido com o estabelecimento de uma burocracia.

[7“O trabalho de algumas das mais respeitáveis categorias da sociedade não produz, como no caso dos criados domésticos, valor algum”, diz Adam Smith, incluindo entre elas “todo o exército e a marinha”, “os funcionários públicos” e as profissões liberais, tais como as dos “clérigos, advogados, médicos, homens de letras de toda espécie”. A obra dessas pessoas, “como a declamação dos atores, a arenga do orador ou a canção do músico (...) perece no próprio instante de sua produção” (A riqueza das nações, Livro I, p. 295-296, Ed. Everyman). É óbvio que Smith não encontraria dificuldade alguma para classificar os nossos “funcionários de escritório”.