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cartesianismo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O que confere ao projeto cartesiano o seu fascinante caráter e faz com que conserve ainda hoje o seu mistério e sua sedução, é que ele se confunde com o próprio projeto da filosofia. Uma filosofia radical e primeira é a investigação do Começo. Semelhante investigação não é a de um método que nos permita chegar até ele. Pelo contrário, método algum seria possível se não dispusesse de um ponto de partida seguro, se não encontrasse sua região inicial no próprio Começo. A intuição crucial do cartesianismo consistiu justamente em afirmar a pertença de seu modo de proceder ao que se adiante em primeiríssimo lugar e o torna assim possível ao mesmo tempo que toda coisa. No que diz respeito ao começo, pensamos que ele advém como o “novo”. Como nova forma do pensamento, o cartesianismo marca, desse modo, o começo da filosofia moderna. Mas o começo da filosofia moderna supõe muitos aconteciments prévios. Ele não é o começo propriamente. O começo da filosofia cartesiana – que fique claro, a ordem segundo a qual ela desenvolve as suas razões e a primeira delas, em particular – supõe também coisas prévias, ele não é o começo. O começo não é o novo, é antes o Antigo e o mais antigo. É em direção a esse mais antigo que conscientemente se volta o projeto cartesiano a fim de tomar apoio nele e começar. Por isso, quando Schelling   denuncia a pretensão de Descartes   em recusar, de uma só vez, a contribuição de uma tradição da qual homem algum seria capaz de reconstruir, por si só, a infinita riqueza, por mais fiel ao texto que seja a censura de Schelling – “eu seria obrigado, diz Descartes, a escrever aqui do mesmo modo tal como se tratasse de uma matéria que ninguém antes de mim tivesse tratado” [1] –, ele não pode encobrir a nossos [52] olhos a intenção cartesiana, a de fazer com que se retornasse ao momento mais inicial do Começo, pelo qual este começa e não cessa de começar.

O que começa em um sentido radical? O ser, seguramente, se é verdade que nada seria se o ser já não tivesse desdobrado, de antemão, a sua própria essência, a fim de concentrar em si mesmo, em sua essência assim previamente desdobrada, tudo o que é. Em que reside mais precisamente a iniciação do começo radical? O que já está aí antes de toda coisa no justo momento em ela aparece a não ser o próprio aparecer enquanto tal? O aparecer, só ele, constitui a iniciação do começo, não enquanto forma o aparecer da coisa e a sua vinda começante ao ser: um tal começo ainda é tão-somente o começo do ente. Inicial, no sentido mais originário, o aparecer é inicial enquanto aparece a si mesmo e em si mesmo. Só nessa medida, o aparecer é idêntico ao ser e o funda, dado que se ilumina e se acende e que esse rasto luminoso, como iluminação não de outra coisa, mas de si mesmo, como aparecer do aparecer, expulsa o nada e toma o seu lugar. É a efetividade fenomenológica do aparecer em sua capacidade de constituir por si mesmo uma aparência, é essa pura aparência como tal que é o ser. Ela é o começo, não o primeiro dia, mas o absolutamente primeiro. O aparecer como tal, Descartes, em sua linguagem, denomina “pensamento”. Precisamente no momento em que Descartes foi capaz de considerar o pensamento em si mesmo, quer dizer, o aparecer para si mesmo, quando rejeitou todas as coisas para reter apenas o fato da aparência delas – sejamos mais precisos: no momento em que rejeitou as coisas e a aparência delas, com a qual elas estão sempre mais ou menos misturadas e confundidas na consciência ordinária, para não mais considerar senão essa aparência pura, abstração feita de tudo o que aparece nela, – foi então, com efeito, que acreditou poder encontrar o que buscava, o começo radical, o ser: eu penso, eu sou.

Cinco observações nos permitirão ir mais longe nessa difícil repetição [2] do cogito. A primeira é que ele escapa, em todo caso, à objeção feita por Heidegger   em Ser e tempo [3], a saber, que o começo cartesiano não é radical, pois supõe algo antes dele, isto é, uma pré-compreensão ontológica ao menos implícita, pois se eu não soubesse, ao menos confusamente, o que é o ser, como poderia alguma vez dizer “eu sou”? Mas Descartes não [53] diz “eu sou”, ele diz “logo eu sou”. Longe de surgir sem pressuposição, sua afirmação resulta da elaboração sistemática do prévio indispensável somente a partir do qual a pressuposição do ser é possível [4]. Esse prévio é tão-somente o aparecer, o qual Descartes nomeia “pensamento”. A determinação desse prévio é o conteúdo mesmo do cogito. “Nós somos nisso mesmo que pensamos” [5].

Um tema constante nas Meditações, assim como nas Respostas às objeções inconsistentes que lhe foram endereçadas, é que a posição do sum resulta da posição do pensamento. Por um lado, o aparecer abre o campo no qual chega à revelação de si, de tal maneira que esse campo é constituído por ele e por sua revelação. Por outro lado, o ser não é nada mais que aquilo que fulgura como a efetividade fenomenológica desse campo. Desse modo, em “eu penso, logo eu sou”, logo significa uma definição fenomenológica do ser pela efetividade dessa revelação do aparecer em si mesmo e como tal. Daí que Descartes apenas podia encolher os ombros diante das objeções dos que, tais como Gassendi, declaravam que também poderiam concluir a existência a partir de não importa qual de suas ações consideradas indiferentemente: “Enganais-vos por completo porque, dentre estas ações, não há sequer alguma da qual eu esteja inteiramente certo, e aqui refiro-me a esta certeza metafísica da qual unicamente tratamos, exceto o pensamento. Por exemplo, esta consequência “eu passeio, logo eu sou”, só seria razoável quando o conhecimento interior que eu tenho dela fosse um pensamento do qual só esta conclusão estaria certa...” [6] Ir, como faz o cogito, do pensamento ao ser, não é simplesmente pressupô-lo ou deixar o seu conceito indeterminado, é indicar a direção de sua essência. Em Descartes enraíza-se, então, a ideia de algo como uma ontologia fenomenológica. [MHPsique:51-53]


LÉXICO: cartesianismo

Observações

[1Les passions de l’âme, FA, III, p. 951 ; AT, XI, p. 328. Nossas referências remetem à edição das OEuvres philosophiques de Ferdinand Alquié, Paris, Garnier, designada FA, seguido pelo número do tomo e da página, e à edição das OEuvres de Descartes, de Adam e Tannery, Paris, Léopold Cerf, designada AT, seguida pelo número do tomo e da página. Sobre a censura de Schelling, cf. Les ages du monde, trad. W. Jankélévitch, Paris, Aubier, 1949, p. 97.

[2No sentido heideggeriano de compreensão do termo latino repetere, como um voltar a procurar, como a retomada de uma busca na qual, ao contrário de ser simplesmente a legitimação do antigo, o novo pode também se manifestar (N. do T.).

[3Niemeyer, Halle, 1941, p. 24.

[4Esta leitura heideggeriana de Descartes já incomodava Henry desde as primeiras páginas de L’Essence de la Manifestation (N. do T.).

[5Principes, I, 8; FA, III, p. 95; AT, IX, II, p. 28; grifo nosso.

[6Réponses aux Cinquièmes Objections, FA, II, p. 797 ; AT, VIII, p. 352.