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cogito

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

“Penso, portanto sou.” Penso: sou uma corrente de pensamentos. Um pensamento segue a outro, portanto sou. Um pensamento segue a outro por quê? Porque o primeiro pensamento não basta a si mesmo, porque exige outro pensamento. Exige outro para certificar-se de si mesmo. Um pensamento segue outro porque o segundo duvida do primeiro, e porque o primeiro duvida de si mesmo. Um pensamento segue o outro pelo caminho da dúvida. Sou uma corrente de pensamentos que duvidam. Duvido. Duvido, portanto sou. Duvido que duvido, portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto duvido que sou. Duvido que duvido, portanto sou independentemente de qualquer duvidar. Assim se afigura, aproximadamente, o último passo da dúvida cartesiana. Estamos num beco sem saída. Estamos, com efeito, no beco que os antigos reservaram a Sísifo.

A mesma situação pode ser caracterizada por outra corrente de pensamentos: Por que duvido? Porque sou. Duvido, portanto, que sou. Portanto duvido que duvido. É o mesmo beco visto de outro ângulo.

Este o lado teórico da dúvida radical. Tão teórico, com efeito, que até bem pouco tempo tem sido [13] desprezado com razão como um jogo fútil de palavras. Tratava-se de um argumento pensável, mas não existencialmente vivível (erlebbar). Era possível duvidar teoricamente da afirmativa “sou”, e era possível duvidar teoricamente da afirmativa “duvido que sou”, mas essas dúvidas não passavam de exercícios intelectuais intraduzíveis para o nível da vivência. Os poucos indivíduos que experimentaram vivencialmente a dúvida da dúvida, que autenticamente duvidaram das afirmativas “sou” e “duvido que sou” foram considerados loucos. A situação atual é diferente. A dúvida da dúvida se derrama, a partir do intelecto, na direção de todas as demais camadas da mente e ameaça solapar os últimos pontos de apoio do senso de realidade. É verdade que “senso de realidade” é uma expressão ambígua. Pode significar simplesmente “fé”, pode significar “sanidade mental”, e pode significar “capacidade de escolha”. Entretanto o presente contexto prova que os três significados são fundamentalmente idênticos. A dúvida da dúvida ameaça destruir os últimos vestígios da fé, da sanidade e da liberdade, porque ameaça tornar o conceito “realidade” um conceito vazio, isto é, não vivível. [FlusserDuvida:12-13]