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panteísmo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

63. Ninguém suponha que é, isto, algum suspiro de saudade. Ridículo saudosismo o de quem pretendesse insuflar vida nos deuses que já estavam mortos na literatura que aparentemente [150] lhes celebrava a vida. E tanto menos saudades temos quanto mais certos estamos que a vida se lhes prolonga, não como o que foram, mas como o que são, enquanto sejam os «acenantes mensageiros da Divindade». A expressão é de Heidegger   («die winkenden Boten der Gottheit») no ensaio transcrito em apêndice. Mas parece equívoca. Reproduzamos o contexto: «Os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade. A partir do seu oculto reinar, o Deus aparece no seu ser, que o subtrai a todo o confronto com o que é presente.» O que nos parece equívoco é, em primeiro lugar, o texto da primeira proposição: «Os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade» e, dentro dela, «os acenantes». O resto do período pode reverter-se assim: «o Deus (que seria a Divindade da primeira proposição), partindo do seu reinar oculto, vem a aparecer no ser dele, mas este mesmo ser do Deus (que tem por ‘acenantes mensageiros’, os divinos) subtrai o Deus de qualquer confronto com o que é presente, isto é, ‘o ser de Deus’ e ‘qualquer ente determinado e manifesto’ (Anwesende = praesens) são incomensuráveis, ou ainda o ser da Divindade transcende todas as determinações de coisas intramundanas, todas as suas próprias manifestações». Só não vemos que relação isto mantém com o significado da primeira proposição. Parece-nos estar diante de duas expressões incorrelacionáveis: 1) «Os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade», 2) «A Divindade parte do seu oculto reinar para aparecer em seu ser, mas neste ‘aparecer em seu ser’, a Divindade se recusa a todo o confronto com qualquer de suas manifestações, ou antes, de qualquer manifestação de seu desoculto ser», o que, de novo, nos leva a perguntar, porque, em verdade, ainda o não sabemos, qual o sentido da primeira proposição, quando supomos que ela se relaciona com a segunda.

64. E, forçosamente, tem de relacionar-se. Aliás, a segunda parte do período pouco nos interessa: em primeiro lugar, porque já não menciona os «divinos» (os imortais, os deuses); em segundo lugar, porque se trata de uma proposição que, sob esta ou outras formas, sempre reaparece nos escritos de Heidegger. Voltemo-nos, pois, para a primeira: «os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade». E a pergunta, agora, é esta: «para quê acenam os deuses, os imortais, os divinos?» Acenam para aquele impossível confronto do ser com suas manifestações, ou para outra coisa? Mas agora reparo que o equívoco só está na tradução. Vejamos o original: «Die Göttlichen sind die winkenden Boter der Gottheit.» Podemos manter a tradução. Depois vem: «Aus dem [151] verborgenen Walten dieser...» Alto! Aqui está a chave do enigma: «A partir do seu (dieser) oculto reinar...», o «seu» não se refere à Divindade, mas aos divinos, e a tradução devia ser: «A partir do oculto reinar destes...» e o destes refere-se aos divinos, aos deuses, em suma. E agora, a paráfrase da segunda proposição assume a forma em que se acham inter-relacionadas as duas: «Os divinos são os acenantes mensageiros da Divindade, e partindo do oculto reinar dos divinos, o Deus vem a aparecer em seu ser, mas este mesmo ser do Deus recusa-se ao confronto com qualquer de suas manifestações.» A ambiguidade, o equivoco aparente, deve-se a um defeito da tradução. O equívoco está todo naquele «seu» (destes) que tinha de entender-se como «seu» dos divinos, e não como «seu» de Deus. Simples lapso do primeiro tradutor que me passou despercebido, e também ao tradutor francês. Só não a Otto Pöggeler (Der Denkweg Martin Heideggers, 1963), como acabo de verificar; na p. 265, transcreve ele a passagem em questão, de modo inequívoco — «aus deren verborgenem Walten der Gott in sein Wesen erscheine».

65. Mas, ainda assim, pergunta-se: que relação se estabelece (ou Heidegger pretendeu estabelecer) entre «acenantes mensageiros da Divindade» e o «oculto reinar deles»? Ainda não se vê com clareza, «para que acenam os deuses em seu oculto reinar». Se os deuses reinam ocultamente, como havemos de ver-lhes os acenos? Fechemos os olhos ao que ainda parece contraditório, e atentemos só em que o Deus «aparece no seu ser», partindo do «oculto reinar dos deuses». O «partindo» talvez se possa entender como «em se partindo». Mas como pode, quem pense nisso, partir de um oculto reinar? Revolvam-se todas as palavras do texto; os deuses saem da ocultação do seu reinar, acenando; mas, de novo e sempre, para que acenam eles? Acenam para o seu próprio oculto reinar, quando já reinam num reino desoculto, ou acenam para a Divindade, seja ou não seja oculto o seu reinar (o reinar deles), ou ainda para outra coisa que não está expressa, que Heidegger negligenciou expressar, porque de alguma forma expresso no inexpresso? E temos, ao que parece, só estas três possibilidades: primeiro, a alternativa bem expressa: ou os deuses, saindo (ou entrando?) do seu oculto reinar, acenam para si mesmos, ou acenam para o ser de Deus. Depois, e só depois, é que vem outro possível aceno. Acenam eles para o céu e a terra e para os mortais que entre céu e terra vivem e morrem? O contexto, para trás e para a frente, não impede que assim se interprete o aceno. [EudoroMito:150-152]


LÉXICO: panteísmo