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mecanicismo

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O quadro de pensamento no qual se movimentou Galileu   foi o do mecanicismo, cujos pressupostos várias vezes definiu. O mecanicismo consiste na filosofia que se explicitou no início do século XVII, segundo a qual todos os fenômenos naturais devem ser explicados por referência à matéria em movimento. A realidade física é concebida como um conjunto de partículas que se agitam e se entrechocam. O mundo, em seu conjunto, apresenta-se como uma espécie de sistema mecânico. A metáfora da máquina constitui o símbolo dessa filosofia: o sistema do mundo funciona como o de um relógio. Para compreendê-lo, torna-se necessário decifrar as engrenagens de seu funcionamento. A natureza nada mais é que uma máquina complexa, na qual a matéria e a energia se interagem como seus constituintes últimos. O mecanicismo passou a constituir o programa geral da ciência moderna. Descartes   dizia que o organismo vivo não passa de uma máquina especialmente complicada, devendo obedecer mecanicamente às leis da física. Galileu, por sua vez, numa carta a um aristotélico intransigente, opõe a experiência à certeza retrógrada do magister dixit: "Se a filosofia fosse a que está contida nos tratados de Aristóteles, serias o maior filósofo do mundo, posto que tens em mão e no espírito as menores passagens de suas obras. Para mim, na verdade, julgo que o livro da filosofia é o que está perfeitamente aberto diante de nossos olhos. Mas como ele está escrito em caracteres diferentes dos de nosso alfabeto, não pode ser lido por todo mundo. Os caracteres desse livro não são outros senão triângulos, quadrados, círculos, esferas, cones e outras figuras matemáticas, perfeitamente apropriadas a tal leitura".

Portanto, com a revolução galileana, surge uma inteligibilidade mecanicista transformando, não somente esta ou aquela maneira de pensar, este ou aquele modo de ver: é o próprio globus intellectualis que constitui o objeto de uma global transfiguração. O mecanicismo é uma reforma do entendimento cujos efeitos se fazem sentir em todos os setores do conhecimento. Apresenta-se como uma total formalização do espaço intelectual. A exigência mecanicista de uma inteligibilidade de ruptura precedeu e suscitou os meios de seu desabrochamento constitui o pressuposto de toda pesquisa. Surge ou "explode" como a condição mesma de toda a ciência. O nome de Galileu se impõe como um símbolo. A mutação epistemológica operada pelo mecanicismo é, ao mesmo tempo, uma mutação antropológica. O esquema da máquina toma o lugar do Cosmos. Fornece ao mecanismo um pressuposto geral para a investigação da realidade. Os objetos, tanto na ordem física quanto na moral, articulam-se como sistema de engrenagens. O programa de toda a explicação consiste em desmontar e remontar um domínio dado de conhecimento, em definir suas partes constituintes e em apreender o jogo de ação recíproca entre essas partes. O espaço mecanicista constitui um espaço de interação e de coordenação no qual se lê a ação recíproca dos fenômenos e descartam-se as qualidades ocultas ou as correspondências secretas. O objeto do saber mecanicista possui a mesma constituição. E a ação do espírito, para dele se apossar, reveste os mesmos caracteres. A unificação da matéria do conhecimento implica a unificação do método de pesquisa. Doravante, a função da ciência da natureza e da inteligibilidade matemática, fundamento da ciência experimental, é incompatível com as normas do saber aristotélico. Galileu parte da ideia, preconcebida, sem dúvida, mas que forma o fundo de sua filosofia, de que "as leis da natureza são leis matemáticas". O real encarna a matemática. Por isso, não há distância entre a experiência e a teoria; a teoria (a fórmula) não se aplica aos fenômenos "do fora", exprime sua essência. A natureza só responde às questões colocadas em linguagem matemática, porque é o reino da medida e da ordem. E se a experiência guia "como que pela mão" o raciocínio, é porque, na experiência bem conduzida, vale dizer, numa questão bem colocada, a natureza revela sua essência profunda que somente o intelecto é capaz de apreender".

O caráter específico da revolução galileana consiste em ser dirigida para a experiência, para a utilização, para a "tecnologia". Quanto à produção contemporânea do saber científico, é devida, sobretudo, ao método experimental. E este, por definição, destina-se a agir sobre o mundo natural para compreendê-lo (explicá-lo) e controlá-lo (dominá-lo). Desde o nascimento da ciência moderna, os pesquisadores manifestaram profundo interesse, tanto pelas questões teóricas quanto pelas práticas. Robert Boyle, por exemplo, estava consciente do vínculo entre sua descoberta teórica (o volume do gás varia inversamente à pressão -1622) e os problemas práticos de balística. No mesmo espírito, muito tempo antes, Leonardo da Vinci procurou um mecena para levar o cabo sua pesquisa científica, argumentando que seria útil para a melhoria dos armamentos. Não queremos dizer que a base econômica determine mecanicamente a superestrutura. Porque, uma vez colocadas, as questões teóricas têm sua vida própria: no contexto da revolução industrial do século XVIII, por exemplo, a teoria e a prática permanecem institucionalmente separadas. [Hilton Japiassu  , «A Revolução Científica Moderna»]


LÉXICO: mecanicismo e afins