Página inicial > Termos e noções > fato social

fato social

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

A psicologia, que se bifurcara em estudo do comportamento e psicanálise (permita-se-nos esquematizar algo grosseiramente), reunificou-se como ciência da conduta, termo sob o qual se abrangem tanto as reações globais do organismo ao meio como as respostas verbais e simbólicas e toda a rica vivência do sujeito que experiencia. Entretanto, a antropologia cultural estudava o homem através das obras em que a sua conduta se objetiva e que dela ficam como testemunhos; ora a psicologia vinha a descobrir que as funções psíquicas não podem ser compreendidas separadamente das suas obras — de todos os objetos culturais, afinal (I. Meyerson). Por seu turno, a etnologia e a antropologia cultural hauriam da psicanálise a ideia de complexo e inspiraram-se nela para atender aos recessos da vida mental dos primitivos; o que levaria Malinowski a verificar que o complexo de Édipo não é universal, antes peculiar a certos tipos de sociedades, e Abram Kardiner, Cora du Bois e Ralph Linton a analisar sistematicamente certas culturas arcaicas pelo método psicanalítico, chegando assim ao conceito de «personalidade de base». Este, de sua banda, pressupunha o de padrões de cultura e carris de conduta que Ruth Benedict elaborara e Ralph Linton desenvolvera, agora em relação com o de posição social (status). Ia a psicologia beneficiar desta aparelhagem conceitual e meios de abordagem, descobrindo o que há de cultural e social na própria personalidade; quer dizer que não só se foi desenvolvendo a psicologia social, como até a chamada psicologia geral e mesmo a diferencial se tornaram sociais por razões profundas. A antropologia cultural, com as ideias de padrões de cultura e status, vinha a articular-se à antropologia social, que partira diferentemente, não das obras dos homens para as suas condutas, mas das relações que os interligam para a objetivação cultural. E, por sua vez, a antropologia social, empregando o método comparativo, veio, com Radcliffe-Brown, a descobrir a sua identidade com a sociologia, enquanto a noção de «papel social» unificava também todos os quatro domínios de que falamos. Os testes projetivos, que a psicologia forjara para diferenciar personalidades e diagnosticar estados patológicos, adaptam-se de modo a servirem para determinar características de grupo, reações coletivas. A economia política, que sç contentava com o tipo abstrato do homo economicus, vem a reconhecer que não pode explicar a procura sem ter em conta os consumidores com a sua complexa mentalidade, e que não pode explicar a oferta apenas pelos cálculos ex ante e ex post, tem de fazer intervir o empresário com toda a sua formação — papel social, padrões culturais, personalidade; de modo que a economia leva a fomentar o inquérito psicológico, aprofundando todos os recessos das motivações (cujo conhecimento é de primacial importância para sair do subdesenvolvimento).

Encontrou assim a economia, pelas suas vias próprias, aquilo que foi a grande descoberta de Marcel Mauss   e que podemos considerar verdadeiramente o fulcro das ciências sociais: o fato social total. Em cada fato humano, seja ele qual for, estão inclusas todas as facetas que essas várias ciências costumam distinguir. A simples utilização da moeda, por exemplo, pressupõe, e reenvia a uma religião ou magia, atitudes básicas, normas morais, regras jurídicas, processos técnicos, preferências artísticas, etc. Qualquer que seja a conduta, de indivíduo, grupo, camada social ou sociedade global, é sempre a totalidade que está em causa, que é posta em causa. E Gurvitch apresentou em correlação a ideia de fato psíquico total, que do mesmo modo indica que na conduta do indivíduo é a totalidade da sua personalidade que está em jogo, logo a sua integração social — os papéis que desempenha, os estereótipos que emprega e pelos quais se carrila, os símbolos que lhe servem à sua própria vivência, etc. Supusera Charles Blondel   que o inconsciente é a raiz e matriz da personalidade, sendo a consciência sobretudo expressão social; mostrou Jung   que, mergulhando no inconsciente, encontramos o coletivo, com seu equipamento simbólico e mítico; chamou Lévi-Strauss   a atenção para o caráter inconsciente da maior parte das relações sociais, e que por isso a visão que cada membro de uma sociedade tem dela não corresponde à realidade do todo (o que já Durkheim evidenciara, por outras palavras). Significa tudo isto que a todos os níveis da vida mental descortinamos a interligação do coletivo, do social e do individual. Fato social total e fato psíquico total não invalidam o caráter parcial de certas aproximações, da maior parte das pesquisas que desde logo não podem abarcar a totalidade; mas avisam que de meras etapas se trata, a superar.

V. M. Godinho, «Sobre a pesquisa interdisciplinar em ciências humanas», Revista de Economia, vol. xvi, 1965, pp. 145-146.

LÉXICO: fato