Página inicial > Termos e noções > Górgias

Górgias

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

No Górgias, e no livro I da República   (O livro I da República forma um todo, talvez fosse até primitivamente destinado a constituir um diálogo separado: o Trasímaco — cf. A. Diès, intr. à República, p. XVIII e seg.)., Sócrates ataca aqueles que se mostraram apologistas da força. Trasímaco é um plebeu ávido e violento que se atira sobre o seu contraditor como uma fera (Rep. I, 336 o); para ele a justiça não passa do interesse do mais forte (388 c) e se alguns há que condenam a injustiça, não é por recearem praticá-la, mas porque receiam sofrê-la, e portanto a injustiça quer-se vantagem e proveito. No Górgias, Sócrates tem de discutir com Pólo — um jovem impetuoso que vê na retórica o meio de se tornar tirano, o seu ideal é Aquelau, um tirano da Macedónia que conquistou o poder e a riqueza através de crimes—, com Górgias e com Calióles. Este último é um aristocrata que detesta o povo e a democracia, afirma que as leis foram estabelecidas pelos fracos e pela multidão para sujeitar os fortes e impedi-los de manifestar a sua superioridade (483 bc). A justiça natural é, portanto, para ele o triunfo do mais forte (483 d, 488 c); é necessário alimentar em, nós as mais fortes paixões e utilizar a coragem e a inteligência em dar-lhes tudo aquilo que desejam (491 e); aqueles que elogiam a temperança são fracos incapazes de satisfazer as suas paixões (492 c). Sócrates mostra que essa distinção entre a «natureza» e a «lei» não resiste a uma análise. De fato, se a multidão impõe a sua lei igualitária, é, por conseguinte, porque é mais forte que o indivíduo, e deste modo essa justiça igualitária é a expressão de uma superioridade natural e não a de uma instituição, como pretende Cálicles. Cálicles está, portanto, fechado num círculo vicioso. Uma instituição é um fato e não é com fatos que se criticam outros fatos, só se pode fazer tal em nome de um ideal, que não é um fato em si. Por isso Sócrates põe a força do valor acima do valor da força; para ele, contrariamente a Cálicles, «é preferível sofrer a injustiça do que cometê-la» (527 b).

Sócrates mostra isto na maneira como acolheu a sentença dos juízes que o condenaram à morte e ao recusar os esforços dos seus amigos que queriam que fugisse da prisão. O Críton dá-nos as razões dessa recusa na célebre passagem da prosopopeia das leis. Sócrates diz a Críton, que acaba de o convidar a evadir-se, o seguinte: «Supõe que no momento em que nos formos evadir, ou qualquer que seja o termo para qualificar a nossa saída, as leis e o Estado se apresentam na nossa frente e nos interrogam deste modo: ‘Diz-nos, Sócrates, o que pensas fazer? O que pretendes com o que vais tentar, a não ser destruir-nos, a nós, as leis e o Estado todo, quanto puderes? Achas que um Estado pode subsistir e não ser derrubado, quando os juízos que nele se dão não têm força e os particulares os anulam e os destroem? [... ] Temos, Sócrates, fortes provas de que te agradamos, nós e o Estado. De fato não terias ficado nesta cidade mais assiduamente do que qualquer outro ateniense se ela não te tivesse agradado mais do que a outros. [...] Tiveste até filhos nesta cidade, testemunhando deste modo que ela te agradava. Mais: mesmo durante o teu processo, podias, se quisesses, ter acarretado a pena do exílio, e aquilo que hoje projetas ao avesso da cidade executá-lo-ias com o seu assentimento. Mas nessa altura afirmavas ver a morte com indiferença; declaraste preferi-la ao exílio; e hoje, sem te envergonhares por teres dito essas belas palavras, sem te preocupares conosco, as leis, empreendes a nossa destruição, vais fazer aquilo que faria o mais vil dos escravos, tentando fugir apesar dos acordos e das promessas que fizeste de te portares como um bom cidadão. [...] Se te retirares para uma das cidades vizinhas, Tebas ou Mégara, pois tanto uma como outra têm boas leis, irás chegar lá, Sócrates, como inimigo dessas constituições, e todos aqueles que cuidam da sua cidade irão olhar para ti com olhos desconfiados considerando-te como um corruptor de leis, e irás confirmar era favor dos teus juízes a opinião do que julgaram acertadamente o teu processo; pois todo O corruptor de leis passa com razão por corruptor de jovens e dos espíritos fracos. Irás então evitar as cidades que têm boas leis e os homens mais civilizados? E se assim fizeres, valerá a pena viver? [...] Se partires hoje para o outro mundo, partirás injustamente condenado, não pelas nossas leis, mas pelos homens. Se, pelo contrário, te evadires depois de ter vilmente respondido à injustiça pela injustiça, ao mal pelo mal, depois de ter violado os acordos e contratos que te ligavam a nós, depois de ter feito o mal àqueles a quem deverias não tê-lo feito, a ti, aos teus amigos, à tua pátria, a nós, então ficaremos zangados contigo durante a tua vida e lá as nossas irmãs, as leis do Hades, não te acolherão favoravelmente, sabendo que tentaste destruir-nos, porquanto isso depende de ti.» (Críton, 50 b seg. — trad. Chambry)

Em resumo, como diz Vladimir Jankélévitch, Sócrates «vingou-se dos seus acusadores legando-lhes a sua morte» — V. Jankélévitch, L’ironie (Paris, 1936), p. 6. [JBRUN]