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devir

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Devir (gignesthai)

I. O conceito de devir é central na ontologia platônica. Tudo o que se modifica, se move (ver MOVIMENTO), cresce ou também perece — portanto, tudo o que abrange nosso mundo sensível — pode ser ontologicamente caracterizado pelo conceito de devir (que não pode ser simplesmente identificado com o conceito de crescimento ou de geração). Para a ontologia platônica nos diálogos intermediários é característica uma distinção muito nítida entre dois âmbitos de realidade (cf. por exemplo Banq. 210e-211b): o âmbito do devir é distinguido do âmbito do SER (e nesse processo Platão pode empregar conceitos terminologicamente diferentes). Ao âmbito do ser não pertencem as coisas de nosso mundo também apreensível pelos sentidos, mas aquilo que se chamam ideias ou formas platônicas (também aqui não há um terminologia fixa; ver ideia). Diferentemente das coisas que estão submetidas ao devir, as ideias ou formas são imutáveis. Nisto, as ideias são as causas para que as coisas de nosso mundo experiencial sejam como são. A diferença entre o âmbito do devir e o do ser tem uma consequência para a avaliação da maneira como falamos sobre nosso mundo perceptível: sem dúvida, dizemos, por exemplo, que Teeteto   é belo ou que Sócrates é justo, e assim declaramos o ser das coisas (precisamente, o ser bonito ou o ser justo), que podemos perceber, mas, estritamente falando, segundo Platão, deveríamos dizer nesses casos apenas que Teeteto devém belo ou que Sócrates devém justo, porque Teeteto e Sócrates fazem parte das coisas que pertencem ao âmbito do devir. A interpretação-padrão dessa crítica à linguagem cotidiana afirma que as coisas que percebemos se modificam continuamente e, nesse sentido, se encontram sempre apenas em devir. Essa interpretação-padrão é insatisfatória, pois não leva muito em consideração a diferença ontológica entre o âmbito do ser e o do devir. Duas outras interpretações são as seguintes: Vlastos (1981) propôs uma primeira possibilidade de entender com mais precisão essa revisão do uso linguístico: se em nossa linguagem cotidiana dizemos “Teeteto é belo”, então o uso linguístico nos engana num aspecto importante. Há apenas uma coisa que é bela em todos os aspectos sem outras qualificações, a saber, a ideia da beleza. Tudo em nosso mundo experiencial não é belo, mas participa da ideia da beleza (ver participação). Mas se alguma coisa apenas participa de uma ideia também sempre há um aspecto sob o qual aquilo que participa da ideia também exibe outras propriedades, que contradizem o que é expresso pela participação nessa ideia: em nosso mundo experiencial, de coisa nenhuma podemos declarar a beleza sem qualquer outra qualificação; um homem como Teeteto não é belo em todos os aspectos. Sempre há também um aspecto em que ele é feio. Uma segunda possibilidade de entender o discurso sobre o devir foi proposta por Frede (1988). Ele parte da noção de que “devir” não necessariamente implica que aquilo que devém modifica-se sempre. Em grego, há também outro uso linguístico: a palavra “devir” (gignesthai) é também utilizada numa expressão do tipo “x devém F”, quando x apenas revela as características externas, que realmente só podem ser atribuídas a F. Se, por exemplo, dizemos, a respeito de uma pessoa, que uma ação sua foi gentil, não queremos dizer que a própria pessoa é gentil, mas sim que ela agiu como agiria uma pessoa que é gentil. Sua ação revelou os traços externos que são característicos de uma pessoa que é, ela própria, gentil. Mas realmente só se pode dizer o ser belo ou ser justo a respeito da ideia da beleza ou da ideia da justiça. Tudo o que participa da ideia torna-se apenas belo ou justo não porque se encontra num processo, mas sim porque, como algo que participa, somente sempre pode revelar as características externas que, no sentido próprio, só podem ser ditas a respeito das ideias. [SHÄFER]