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menis

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

SLOTERDIJK  , Peter. Ira e Tempo. Ensaio político-psicológico. Tr. Marco Casanova  . Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 17-18

A questão de saber se Homero  , tal como algo que aconteceu mais tarde com Heráclito e tal como continuou acontecendo muito mais tarde com Hegel, já acreditava que o ato de guerra seria o pai de todas as coisas, pode permanecer aqui sem resposta. Também pensar que Homero, o patriarca da história da guerra e o professor de grego de inúmeras gerações, possuía um conceito de “História” ou “civilização” é incerto, até mesmo improvável. A única coisa segura é que o universo da Ilíada é tecido a partir dos feitos e dos sofrimentos da ira (menis)— assim como a Odisseia, pouco mais jovem, declina os feitos e os sofrimentos da astúcia (metis). Para a ontologia arcaica, o mundo é a soma das lutas que precisam ser conduzidas em seu interior. A ira épica aparece para aquele que a decanta como uma energia primária, que brota a partir dela, urna energia impossível de ser deduzida, tal como a tempestade e a luz do sol. Ela é uma força de ação cm sua figura quintessencial. Uma vez que pode requisitar como uma primeira substância o predicado “a partir de si”, ela antecede todas as suas incitações locais. Para Homero, O herói e sua menis formam uma parelha inseparável, de modo que toda derivação da ira a partir de ensejos externos se torna desnecessária diante dessa união pré-estabelecida. Aquiles é tomado pela ira, assim como o Polo Norte é gelado, o Olimpo é envolto em nuvens e o monte Ventoux é cercado por ventos bramantes.

Isso não exclui o fato de os ensejos prepararem o palco para a ira. Todavia, seu papel restringe-se literalmente a “e”-vocá-la, sem transformar sua essência. Como a força que reúne o mundo contencioso em seu elemento mais intrínseco, a ira conserva a unidade da substância em sua pluralidade de erupções. Ela existe antes de todas as suas manifestações e sobrevive por assim dizer inalterada às suas explosões mais intensas. Quando Aquiles se acha acocorado em sua tenda, urrando, magoado, quase paralisado, cheio de rancor em relação aos seus próprios companheiros porque o comandante de exércitos Agamênon lhe tinha roubado a bela escrava Briseida, este “presente de guerra” extremamente significativo em termos simbólicos, essa cena não produz nenhuma quebra em sua natureza furiosa e brilhante. A capacidade de sofrer por ter sido preterido distingue o grande guerreiro; ele ainda não necessita da virtude do perdedor que é “capaz de abandonar algo”. Para de, é suficiente saber que tem razão e que Agamênon lhe deve algo. Segundo os conceitos gregos arcaicos, essa dívida se apresenta de forma objetiva, uma vez que a honra do grande guerreiro é por sua vez de uma natureza mais objetiva e mais substancial. Se aquilo que vem primeiro de acordo com a escala hierárquica retira uma distinção daquilo que vem primeiro por sua força, o ato de ferir a honra é realmente dado num nível extremo. O episódio da ira mostra a força de Aquiles numa inércia ensimesmada — mesmo os heróis conhecem tempos de indecisão e de um enfurecimento voltado para o interior. No entanto, basta um impulso violento o suficiente para colocar uma vez mais em curso o motor de sua menis. Se este impulso é fornecido, as consequências são aterrorizantes e fascinantes a ponto de se tornarem dignas de um “destruidor de cidades” com um recorde bélico de 23 povoamentos aniquilados. [1]

Observações

[1Cf, Homero, llíada, canto 9, versos 328 et seq