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agnoia

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

O «o que é», como pergunta e como resposta, como questão orientadora do saber e como sua caracterização última, assume pois uma absoluta radicalidade no pensamento platônico, radicalidade que não é só, como vimos, de exigência especulativa, mas também, e talvez principalmente, de coerência e de sentido para a vida.

Só que esta radicalidade da questão «o que é» funda-se, por sua vez, pelo menos na sua emergência expressa, na radicalidade da ignorância que a provoca. Pois que, se é certo que o perguntar «o que é» não assinala um método entre outros, mas o procedimento necessário e único dum saber que se busca e que não afeta apenas o pensar, assim abstraído daquilo em que se radica, mas a própria vida, na sua imediata carência de sentido e de valor ontológico, uma tal radicalidade advém de uma inaugural tomada de consciência de um não-saber que é não saber o que é e do coincidente reconhecimento de que não saber isso é não saber nada, pois que sem isso nada se sabe e nada se é.

Esta tomada de consciência, enquanto tal e como imediata assunção de uma radical ignorância que, pela sua mesma imperiosa radicalidade, conduz a um radical desejo de saber e a um radical desejo de ser, permeia a totalidade dos diálogos platônicos, nomeadamente os do primeiro período, quer como simples confissão de Sócrates, quer como, nalguns casos, expressa referência a uma generalizada ignorância que não simplesmente denega o saber, mas denega e toma vertiginosamente abissal a própria vida.

Assim no Górgias  , que termina com a consciência de uma instabilidade dos «pareceres», que é sinal de uma monumental e infamante ignorância (527de). No Ménon, onde Sócrates declara explicitamente jamais ter encontrado alguém que soubesse a excelência (71c; cf. R. V, 476e). No Laques  , em que o reconhecimento final da ignorância sobre a coragem é acompanhada por uma vigorosa proibição socrática de que os circunstantes permaneçam no mesmo estado (201a). Na Apologia, enfim, em que Sócrates declara a «sabedoria humana» como «algo de pouco ou mesmo de nenhum valor» (23a; cf. R. X, 604bc, e Lg I, 644d-645c, VII, 803c).

É talvez, todavia, no Hípias Maior   que a radicalidade da ignorância, para o pensamento e para a vida, bem como o seu carácter infamante e, por assim dizer, paralisador, mais claramente se manifesta. Referindo-se, a culminar o diálogo, ao «terrível adversário» que habita a sua casa e que o não deixa descansar com questões, ou melhor, com a questão «o que é», diz Sócrates:

«Ora, quando entro em minha casa e ele me ouve falar assim [i. e., à maneira de Hípias], pergunta-me se não tenho vergonha de discutir descontraidamente sobre os belos modos de vida, quando acerca do belo sou tão manifestamente convencido de que não sei o que ele é. E, no entanto, diz ele, ‘Como é que estabeleces que um qualquer discurso tem uma forma bela ou não, e do mesmo modo para os outros actos, desconhecendo o belo? Pensas tu, porventura, que, quando se está nesta situação, a vida seja muito melhor do que a morte?’» (304de).

Eis, pois, nestes trechos, os quatro traços fundamentais da ignorância em Platão e do seu valor maiêutico como situação germinal do verdadeiro saber: 1 - saber é saber «o que é»; 2 - ninguém sabe «o que é»; 3 - uma tal ignorância é «equivalente à morte»; 4 - urge saber.

Traços que podem ser reconduzidos a uma dupla vocação do assinalar da ignorância: por um lado, ela patenteia-a, mostra o seu carácter infamante, incentiva a superá-la; por outro, indica o modo dessa superação, apontando o que justamente se não sabe, i. e., «o que é».