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cultura

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Chaim Samuel Katz
Até o Iluminismo a cultura era pensada em oposição à natureza. De um lado o homem, ativo, criador de formas, do outro os seres naturais, comprazendo-se em sua própria inércia.

No campo da ciência etnológica, o problema começa a ser suscitado no século XIX. É de Tylor a definição: "Cultura. .. tomada em seu sentido etnográfico amplo é este complexo total que inclui conhecimento, crença, arte, moral, leis, costumes e quaisquer capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade". Definição não posta nos quadros de um ciência, pois multívoca, cada elemento remetendo a outro sem uma fundamentação. Entretanto, permanece até nossos dias, vários autores acrescendo a linha de descritividade, sempre de modo equívoco. Kluckhohn, por exemplo, juntamente com Kroeber: "Cultura consiste em padrões explícitos e implícitos, de e para o comportamento adquirido e transmitido por símbolos, constituindo as realizações distintas dos grupos humanos, incluindo sua expressão em artefatos; o núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (isto é, historicamente derivadas e selecionadas) e especialmente em valores que lhes são conectes; por um lado, sistemas culturais podem ser considerados como produtos da ação e, por outro, como elementos condicionantes da ação ulterior". Os mesmos problemas encontram-se num manual clássico de Antropologia, que define cultura a partir de detalhes empíricos retirados da experiência empírica de outros livros. No seu capítulo 9, a natureza (sic) da cultura é teorizada a partir do seguinte subtitulamento: "a diversidade do comportamento humano", "o conceito de cultura",, "outros significados de cultura", "culturas e subculturas", "cultura e comportamento", "padrões de cultura", "a integração da cultura: a análise de Benedict", "a integração da cultura: temas", "cultura explícita e implícita", "cultura é apreendida", "o papel do comportamento simbólico na cultura" e "diversidade e unidade na cultura". Também nesta linha não fundamentadora, a definição de um teórico soviético contemporâneo, num colóquio oficial: "O conjunto das informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas várias coletividades da sociedade humana". Poder-se-iam citar ao menos mais trinta obras similares, da "ordem de inflação literária" (Lacan) e que pouco acrescentam ao saber. Os exemplos pseudo-fundamentam uma ciência quando esta mesma ciência não expõe seus fundamentos, não os pensa. É verdade que se afirma que "na medida em que a linguagem ordinária e certos usos eruditos de- palavras ordinárias constituem o principal veículo das representações comuns da sociedade, é uma crítica lógica e lexicológica da linguagem comum que aparece, indubitavelmente, como a preliminar mais indispensável à elaboração controlada das noções científicas". Mas parece que os chamados "culturalistas" não fizeram muito mais que colocar em forma, logicamente controlada ou formalizada, ideias do senso comum e hipóteses eruditas ultrapassadas (ver a crítica de Sartre   ao pragmatismo sociológico e antropológico americano.

A tarefa principal seria discutir a respeito da validade ou não do termo "cultura". Mas aqui, sem referências a uma ciência constituída, podem-se tomar duas perspectivas mais adequadas do problema.

Estableta acha que a primeira pergunta deve ser a respeito da função do conceito de cultura. Perguntar sobre seus status científico, que implica em: "uma definição unívoca, escapando ao jogo das conotações equívocas da língua ordinária, e produzida, portanto, por uma configuração teórica determinada; um protocolo de observação rigorosa; um campo de aplicação delimitado". 1 — Mostra que, se se toma o problema da oposição natureza/cultura, pode-se chegar, por exemplo, com Lévi-Strauss   a definir a originalidade de um domínio, ou com Max Weber   a proclamar uma metodologia inexistente nas ciências da natureza. Neste nível pergunta-se sobre o instrumento conceituai da Etnologia. 2 — Se se toma a linha de um Linton, por exemplo, para quem a cultura é "um "conjunto dos modelos de comportamento atualizados numa sociedade definida", nota-se uma observação rigorosa. Aqui há que referenciar os modelos de comportamento, seus reagrupamentos, o estudo de sua distribuição espacial e temporal. Mas o campo de aplicação não está claramente definido, pois o cultural se distribui em todas as instâncias de uma formação social: econômicas, políticas, religiosas etc. Establet pergunta se nesta teorização "cultura" não se confunde com a noção de "formação social". Como por exemplo em Ruth Benedict, "onde a cultura é a forma de uma sociedade, unificada pelos valores dominantes" . 3 — Em outros casos distingue-se "cultura" de "sociedade". Quando se opõe "social" e "cultural", o "social" aparece como o "conjunto das estruturas objetivas que repartem os meios de produção e o poder entre os indivíduos e os grupos sociais, e que determinam as práticas sociais, econômicas e políticas". Mas, o indivíduo se comportará não apenas de acordo com seu lugar na estrutura social (esta pertinência determina um certo comportamento gerido por normas). O indivíduo é sempre social, mas as normas que segue não se determinam unicamente pelas leis que determinam a estratificação social. E, por outro lado, também as normas que o indivíduo segue são sociais, gerais, e são dadas em sistema. Ao mesmo tempo que a estrutura "social" é "relação de forças", esta outra estruturação que se manifesta em sua dependência é "relação de sentido", é o "cultural". Establet mostra que "se o cultural exprime o social é mascarando-o". O social tem primado sobre o cultural, já que este último é um sistema significante que não poderia se auto-significar. Constituindo sistema, o cultural tem uma autonomia relativa em relação ao social. A correspondência nunca é termo a termo (elemento social com elemento cultural) e, além disto, qualquer sistema é sempre relativamente autônomo. A ênfase que esta análise marxista dará é ao social como regulador das características culturais dos vários grupos sociais. A cultura dominante é que determinará a divisão cultural da sociedade, já que a axiologização dos diversos níveis é dada pelas relações de sentido que se estabelecem numa sociedade. Logo, a cultura dominante é estatuída pela classe dominante, ela é que ditará os níveis diferenciais de uma cultura mais ampla, de todas as classes sociais. Com isto se identifica a cultura pela pertinência ao ideológico. A cultura, mesmo sendo sistemática, pertence a este nível: "Na ideologia os homens exprimem, de fato, não suas relações à sua condição de existência, mas o modo pelo qual vivem sua relação às suas condições de existência" (Althusser).

Deste ponto de vista o cultural aparece determinado pelo modo de produção social, pois ele só faz expressá-lo. Uma outra perspectiva marxista quer ver o problema de modo distinto. Lévi-Strauss diz que "toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em cujo primeiro nível situam-se a língua, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião. Todos esses sistemas visam exprimir certos aspectos das realidades física e social e, mais ainda,, as relações que ambos os tipos de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros. Estudando o problema do parentesco, Lévi-Strauss mostra como o homem pode ter seu domínio delimitado, desde que ele intervém na cultura. A proibição do incesto existe universalmente, é um ato pelo qual o homem afirma o reconhecimento de sua relação com o outro. Quando se proíbe a um homem de casar com sua própria irmã ou filha se afirma ao mesmo tempo seu direito de casar-se com a irmã ou filha de um outro que terá também direitos recíprocos. Esta operação de reciprocidade fundamenta o surgimento do homem como tal, desde que só se é homem quando se pertence ao sistema cujo móvel é a reciprocidade. Esta reciprocidade é sempre dada na sociedade e pode ser estudada nas instituições sociais. O princípio de reciprocidade é sempre dado, mesmo quando as instituições que se organizam através dele são fluidas. A análise da reciprocidade mostra que os homens não trocam as coisas em si (cuja inexistência, da coisa em si, já foi definitivamente provada por Kant  ) mas sua forma simbólica, isto é, o modo pelo qual os homens se representam as coisas. Por exemplo, "um sistema de parentesco não consiste nos elos objetivos da filiação ou consanguinidado dados entre os indivíduos só existe na consciência dos homens, é um sistema arbitrário de representações, não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato".

A cultura consiste em sistemas simbólicos e estes podem ser analisados tão profundamente até "atingir um nível onde se torne possível a passagem de um (sistema simbólico) ao outro: cu seja, elaborar uma espécie de código universal capaz de exprimir as propriedades comuns às estruturas específicas dependentes de cada aspecto". Lévi-Strauss se recusa a confundir cultura com ideologia. A análise cultural se faz independentemente do valor que os homens acrescentam ao simbólico e que seria o objeto próprio da análise da ideologia. O valor é sobre-acrescentado ao simbólico no plano vivido, necessariamente, e está sujeito às relações de produção. Quando, por exemplo, se matam búfalos numa família e estes são repartidos organizadamente, isto é, delimitam-se as partes do búfalo que devem ser repartidas, o social aparece como o determinante do modo de repartição, isto é, a cultura se situa no nível de sentido que depende da estruturação do nível de forças. Mas do ponto de vista estrutural sobre o que é cultura, o cultural aparece como a necessidade de repartir. Não se poderia pensar, no nível teoricamente constituído, de uma determinação do social sobre o cultural, pois este já vem dado.

Esta antinomia não é de fácil resolução, mormente quando as teorias se colocam com toda sua articulação (impossível num verbete) . O maior problema em aberto seria explicar a autonomia relativa dos sistemas simbólicos e mostrar como o social articula uma autonomia.