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David

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Judaísmo
André Chouraqui  : Salmos   Caminhos - CAMINHOS DOS SALMOS
Em sua estrada, nem as lutas nem os sofrimentos lhe são poupados. Às trevas do criminoso corresponde a noite do justo. O simbolismo da noite é constantemente utilizado pelo salmista para definir as etapas da purificação; ele aceitará sua dor - seu martírio - até que surjam os clarões da aurora. Ele deve, como vimos, sofrer o assalto das trevas exteriores; o revoltado não lhe dá nenhum descanso, vota-lhe um ódio ininterrupto, gratuito, apaixonado. Vimos as armas e os caminhos de sua guerra. O inocente retribui o mal com o bem, vestindo o cilício ele se mortifica no jejum e reza pelos que o oprimem, Por fidelidade a YHWH Adonai, aceita sua sorte, aceita ser degolado, destruído, devorado, conduzido como um animal ao matadouro; pois todo dia inocentes devem assumir o peso das loucuras mortíferas do criminoso.

Mas ele sofre uma tortura mais intensa de seu inimigo interior; a falta estende suas armadilhas para bloqueá-lo em seu caminho. Faltas voluntárias, ou involuntárias, ele as sabe mais numerosas que os cabelos de sua cabeça; elas o oprimem com seu peso, o submergem, o obsedam. Ele se sabe responsável não apenas por suas próprias faltas, mas, na solidariedade das gerações, carrega igualmente todas as de seus pais (106, 6-7). O salmista não tem nenhum desejo de justificação; não tenta, como Job (Jó), argumentar sem fim sobre o princípio de sua culpabilidade. Ele sabe que, se YHWH Adonai quisesse levar em conta todos os crimes, nenhum homem poderia subsistir diante dele.

Seu tormento mais insuportável é ver-se, por sua falta, separado de Elohims, cativo de sua própria esterilidade e como que morto em relação à vida. Sente amargamente a exterioridade a que sua inadequação o condena. Pois ele merece seu castigo; se a paz o abandona, se seu corpo não é mais que uma chaga, se YHWH Adonai permanece surdo à sua prece, imóvel, adormecido diante do ultraje, se ele próprio, YHWH Adonai, dirige suas llechas e combate contra ele, se lhe faz beber o vinho da vertigem e o põe à prova pela água e pelo fogo, isso se deve apenas à sua iniquidade.

Ele não é mais que uma chaga. Sua ferida está sempre aberta sob seus olhos, nauseabunda e purulenta. Seus rins estão em fogo, seu sangue se altera, ele está pregado ao leito, cada dia traz novas feridas: em sua carne não há nada de intacto. Suas pernas não podem mais carregá-lo, ele é como uma erva murcha, sua pele se resseca, seus ossos se desconjuntam; não come mais, não bebe senão o vinagre de sua aflição. Ele se esvai. Seu coração, cheio de tormento, se torce em seu seio, é traspassado, arde como um fogo e se rompe (69,3).

A noite de suas purificações é melhor simbolizada ainda por estas três imagens que retornam frequentemente nos Salmos: o justo é mudo, é surdo, é cego. Assim ele é arrancado às iniquidade da estrada. Pois aos olhos do mundo sua vocação é a da abjeção; ele é o vergonhoso, o humilhado, o doloroso. A abjeção recai sobre ele de todas as partes, de seus inimigos, de sua consciência, de todos os que o cercam, do próprio Elohims. O hebreu tem nada menos do que dez sinônimos para designai a abjeção do inocente. Essa miséria interior se casa à noite de suas dores para realizar a perfeita alquimia   da redenção. Sua prece é feita inteiramente de espera e de esperança; seu tormento mais agudo não lhe arranca mais que um gemido, que um grito de dor, raramente de impaciência, jamais de revolta.

O homem das dores! Os Salmos nos descrevem suas agonias, mais sangrentas e mais solitárias que as da visão de Isaías. Ele voluntariamente se entregou à vida de pobreza, mas as provações que deve enfrentar vão além da medida humana. Pois sua eleição o reduz à solidão. Ele é um yahid, um solitário. Seus inimigos triunfam e escarnecem de seu abandono onde o veem; seus pais, seus próximos, sua família, seus amigos o evitam. Ele se torna o estrangeiro no sentido absoluto do termo: seu pai e sua mãe o abandonam, seus companheiros, seus íntimos se afastam dele; é traído pelo amigo mais próximo que partilhava seu pão: coberto de vergonha, ninguém mais quer conhecê-lo, não tem mais refúgio, nenhuma alma se preocupa com ele: para todos ele é um objeto de assombro, um mocho, um pelicano do deserto.

Assim ele marcha em direção ao lugar onde o criminoso o espera para derramar seu sangue. O Saltério descreve as agonias do justo. Pois ele não cessa de morrer nos arredores da iniquidade. Está em agonia, a ponto de sucumbir, às portas da morte; às vezes o comparam aos que descem à cova, aos que pereceram para a eternidade; está quase estendido no silêncio do túmulo, às margens do Sheol... Outros textos o mostram positivamente no túmulo, na morada das sombras, habitando o Sheol, como um verme (22, 7-9; 88, 16-19).

Assim; às trevas do criminoso corresponde a noite do justo, a seus crimes sua ascese, à sua blasfêmia seu louvor. Um assegura a permanência do crime, o outro a perenidade da esperança e do amor. Mas a noite do inocente é purificadora, expiatória. Elohims recolhe suas lágrimas num odre, ouve sua prece, acolhe favoravelmente sua súplica. Em sua morte ele renasce em mais luz. Cada uma de suas sufocações, cada uma de suas agonias marca, como veremos, um progresso rumo aos clarões da aurora, rumo a um conhecimento mais profundo, a um maior amor. Pois o justo tem fome, tem sede da presença de YHWH Adonai; ele grita por ela como o cervo às águas das torrentes; e caso se faça pequeno, paciente, caso aceite ser a vítima expiatória dos crimes do revoltado, sabe que sua provação só durará um tempo. Ele é o herdeiro do caminho de perenidade: tal é sua fé, sua esperança.

Todo um vocabulário designa a pátria a que ele aspira, encarnada na terra de Israel e em sua capital, onde reside Elohims: Jerusalém, Ieroushalaims, a herança da paz, terrestre e celeste. Mas, para chegar lá. ele pede a intervenção de YHWH Adonai. Ele fez dentro de si o movimento de abandono total: é da fonte da vida que espera sua salvação. Com todas as forças de sua alma ele chama o julgamento de YHWH Adonai.

Pois o julgamento consagra o fracasso do criminoso e assegura o triunfo do inocente. A fortuna terrestre de um leva à torpeza do Sheol; o sofrimento amoroso do outro conduz ao átrio da casa de Elohims; ele recebe de seu juiz a assistência que lhe permite franquear o limiar implacável e escapar à morte. O inocente espera essa hora com a impaciência da sentinela que espreita a aurora. Ele sabe que esse julgamento marcará a hora de sua extraordinária libertação. Para ele e para YHWH Adonai, as palavras mishpat, julgamento, e sedaqa, justificação, são inseparáveis e se confundem. Ele é o aliado de YHWH Adonai, vive em sua aliança, realiza a exigência de sua lei e Elohims lhe deve seu bem-querer, hessed, proveniente da eleição. Em nenhum instante, em todo o Saltério, ele duvida dessa graça. Não tem a menor inquietude: o justo sairá vitorioso do processo que move contra o revoltado, seu sofrimento lhe vale a expiação de suas faltas; elas serão plenamente perdoadas, seja depois de novas provações, seja (e esta é sua espera) por pura graça. O inocente será inocentado pelo próprio YHWH Adonai, lavado de seus crimes, purificado pelo hissopo, tornado branco como a neve; Elohims, por ele, abandona o cômputo exato das injúrias, apaga, perdoa, extingue sua cólera e, como o Oriente está distante do Ocidente, afasta o castigo da falta. O dia do julgamento marca para o justo sua gloriosa reabilitação. Sua noite é vencida e se abre ao brilho das luzes divinas: ele vê resplandecer sua inocência como a luz, e seu direito como o sol do meio-dia. O cabo de suas provações está definitivamente transposto: ele tem acesso, para a eternidade, à fartura de alegria na luz de Elohims; num certo sentido, o julgamento garante sua identificação com o objeto de seu amor.