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nazareno

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Nazaré, Nazarenos
VIDE

Quem podia, no passado, nos dias anteriores à manifestação terrena de Jesus, explorar esse Caminho e como se chamavam? Temos frequentemente citado o mais vasto e profundo documento da Cabala espanhola, o Zohar   ou Livro do Esplendor, e agora cabe lembrar seus primitivos discípulos, os nazarenos ou nazirim, que na tradição hebraica se consagravam à busca interior, à redescoberta do homem-luz que mora em todos nós; porque entre o Zohar e eles — os nazarenos ou nazareus — existe a raiz comum raz, que significa "secreto" e tem valor numérico 207, a mesma cifra que or, "luz". Se evocarmos agora a famosa frase de Jesus tal como figura em João 8,12: "Eu sou a luz do mundo; o que me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida", e recordarmos que em Efésios 5,8 se diz: "Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da Luz", aludindo a seus discípulos, saberemos por que os primeiros cristãos foram chamados, com Paulo, seu líder, de nazarenos. Não obstante, há com relação a isso uma confusão etimológica não devidamente esclarecida que procede de Mateus   2,23: "... e veio e habitou na cidade que se chama Nazaré, cumprindo-se desse modo o que fora predito pelos profetas: será chamado nazareno".

A rigorosa verdade é que os nazarenos não indicavam um topônimo, mas uma função: encarnavam um voto ao Criador. "Falou Deus a Moisés dizendo: fala aos Filhos de Israel e dize-lhes: o homem ou a mulher que se separar fazendo voto de nazareno para dedicar-se ao Criador (nazir lehizaher leyehová) abster-se-á de vinho e de bebida inebriante; não beberá vinagre de vinho, nem vinagre de outra bebida inebriante, nem beberá suco de uva, nem tampouco comerá uvas frescas nem secas". E também: "Durante todo o tempo de seu nazarenato, não passará navalha sobre sua cabeça, até que se completem os dias de sua consagração; será santo, e deixará crescer o cabelo. Durante todo o tempo em que viver separado para Deus, não se aproximará de pessoa morta. Nem mesmo por seu pai, sua mãe, seu irmão ou sua irmã poderá contaminar-se quando morrerem; porque leva sobre sua cabeça o sinal de sua consagração", podemos ler em Números, 6.

Sublinhei propositalmente a última frase porque está em relação com Kether, a Coroa. Na genealogia nazarena, Samuel, o profeta, e Sansão, o juiz, que precedem a Jesus, são as figuras consagradas pelo nazarenato mais importantes da Bíblia  . O horror à contaminação pelos mortos e pela morte explica, de certo modo, a atitude adotada na frase evangélica: "Deixa que os mortos enterrem seus mortos", Mateus, 8,22. Em contrapartida, a proibição que pesa sobre o vinho tem de ser considerada mais simbólica do que real, visto que se a analisarmos do ponto de vista da Cabala descobriremos que o valor numérico de iain, "vinho", é 70, cifra idêntica à de sod, "secreto", e os nazarenos estavam a par dessa gematria. Há um segredo extraordinário e ambíguo no vinho. Os descendentes da casa de Aarão, isto é, os homens de linhagem sacerdotal, proibiam o vinho quando ingressavam no tabernáculo, já que aproximar-se ébrio do sagrado podia desmerecer a transcendência do rito. No Levítico, 10,9, é recomendada abstenção de vinho "para que não morrais". E, todavia, em outra passagem vemos que o vinho é objeto de consagração, e que com ele são feitas oferendas a Deus. No Gênesis, 49, 11, fala-se do "sangue das uvas", dam anabim, e este é o primeiro antecedente metafórico à associação vinho/sangue. Quase todas as religiões antigas consideravam o sangue como sede da vida, e como na tradição hebraica a vida pertence a Deus, derramar sangue é mostrar parte de seu poder. Por outro lado, Adam, o "homem", é também adom, a cor "vermelha", e a partícula dam alude ao "sangue". Se ocorre — tal como vemos na celebração da Eucaristia — que o Filho do Homem se parte, se divide para dar-se, é pela revelação do que contém seu "sangue", dam, que se tem acesso ao resplendor do álef, letra que simboliza a infinitude do Criador.

Uma importante passagem dos Atos 18,18 nos esclarece que São Paulo   fez certa ocasião voto de nazareno : "Mas Paulo, demorando-se ainda muitos dias, despediu-se depois dos irmãos e navegou para a Síria, e com ele Priscila e Áquila, depois de ter cortado o cabelo em Cencris, porque tinha feito voto". A palavra "voto" é, na versão hebraica, neder, vocábulo que em aramaico assemelha-se a Nazareno - nazir. A superposição dos dois fonemas d/z era frequente em todas as línguas semíticas. De modo que bem podemos imaginar no Apóstolo, como também no Batista, — e com o propósito de alcançar um certo estado de consciência — pois assim o enuncia Lucas   1, 15: "Não beberá vinho nem bebida inebriante; e será cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe", a promessa de um voto de Nazareno - nazarenato provisório, temporário, iniciático.

Assim, pois, os nazarenos, grupo a que por um indefinido espaço de tempo pertenceram Jesus, João Batista e Paulo Apóstolo, se abstinham do vinho, porém conheciam tudo o que este encerra. Ou então — segundo as circunstâncias e as pessoas — não se abstinham e revelavam suas virtudes ocultas. Quanto à cabeleira sobre a qual não se deve "levantar navalha", certos indícios nos permitem inferir que o profeta Elias (2 Reis, 1,8) era um desses baal-sear, "possuidor de longos cabelos" que levava uma vida entre profética e nazarena. A palavra hebraica para "cabelo", sear, pode ser lida, com outra acentuação vocálica, como shaar, "porta" ou "entrada". Por acaso não disse o Nazareno - Mestre de Nazaré, em João 10,9: "Eu sou a porta; o que por mim entrar será salvo, e entrará e sairá"?

A separação, a consagração dos nazarenos implicava, segundo mencionamos, um "ter cuidado", um "prestar atenção". Eram eles que, herdeiros de Elias, tinham o poder de "devolver o coração dos pais aos filhos", diz Lucas 1,17. Se repararmos na palavra grega empregada para "filhos", não veremos huios mas teknon, "criança", quer dizer, o "como crianças" necessário para reviver a experiência paradisíaca (v. elakistos). A palavra teknon, por sua vez, se assemelha a teknáo: "fazer uma obra de arte". Pelo visto, aos nazarenos cabia restituir um estado primigênio, ucrônico, a um mundo caído no tempo, apanhado pela rede inerte da cronologia. Ao ligar os corações, seu trabalho era cordial, amoroso, unitivo. Por isso eram curadores de almas, terapeutas. Se invertêssemos a palavra hebraica "voto", neder, obteríamos radán, "o que se afasta", porém também "aquele que desce" (rad). Afastavam-se do tumulto humano, da massa, para descer às profundezas de si mesmos, até a cripta, a mina, o lagar de seu próprio coração em que os sempre vivos caminhos da sabedoria preparavam o mosto do vinho de seu sangue.