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aceno

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

83. Se considerássemos a filosofia como ensaio ou experimento de linguagem, ainda que muitas vezes frustre, destinado a encher de significação o silêncio insignificado por entre as significativas palavras dos mitos, teríamos de supor que ela vem de muito mais longe do que a história nos fez crer que vem. Vem do tão longe que está, ou supomos que esteja, o mais antigo pressentimento de que os «deuses-acenantes» são «mensageiros da Divindade», isto é, que os acenos acenam para a Originária Origem de todos os «seres-origens» que, acrescidos às «coisas», delas fizeram símbolos. E assim, uma filosofia que se recuse a deixar para trás religião e arte; filosofia, portanto, que também tem sua ambiência natural na trans-objetividade, pode descobrir o seu jogo, tentando procurar o enigmático sentido daquelas palavras de Heidegger  , com que, há muito, vimos jogando, num jogo que não é o dele. Reproduzo-as, mais uma vez, traduzidas, mas agora com o original intercalado:

— Os divinos são acenantes mensageiros da Divindade.
Die Göttlichen sind die winkenden Boten der Gottheit

— A partir do seu (deles) oculto reinar,
Aus dem verborgenen Walten dieser,

— o Deus aparece no seu ser,
erscheint der Gott in sein Wesen,

— que o subtrai a todo o confronto com o que é presente.
das ihn jedem Vergleich mit dem Anwesenden entzieht.

Perfeitamente visível é que o nosso jogo se abriu com «os deuses são acenantes» os deuses acenam, os deuses só acenam, os deuses só podem acenar. E logo interveio (numa interpretação que repudio, agora, mas não elimino do texto, porque, ao final de contas, quem sabe se ela, de algum modo, não acerta em algo de essencial) algo que não se lê no texto de Heidegger nem se supõe que o deixasse subentendido: o acenar do aceno faz-se de homem para mundo e de mundo para homem, desde que algum dos deuses se aposse da disponibilidade do homem (não é necessária qualquer referência «mundo»: ele é pura disponibilidade) que, na [171] possessão, deixa sua alma no homem, transferindo seu corpo para o mundo — alma e corpo que seriam como o dentro e o fora do mesmo deus. Um deus possessivo e acenante acena, ainda que em mudo aceno, para o símbolo arquetípico: «homem-deus-mundo», algo que é certa unicidade que corresponde à unicidade de certo deus, ou melhor, certo deus acenante acena para certa espécie de correlação mútua de homem e mundo, pela qual nem um nem outro produz o seu correlato; ambos, este homem e este mundo, surgem ao mesmo tempo do mesmo acenar de um deus que num e noutro imprime o mesmo «tipo». Com qualquer dos outros deuses acenantes aconteceria o mesmo. Também se pode dizer que o acenar de certo deus encena certo drama ritual simbolizante, em que tudo — atores (homens), palco e cenário (mundo), libreto (mito) — é do tipo cujo arquétipo é o acima referido. De modo que o acenar se faz aceno para o acenante (deus) e aceno para o acenado, isto é, para o símbolo arquetípico, que é reino desocultado do seu «reinar oculto». De cada vez que um deus acena de dentro do homem de que se apossou, este homem conta um mito significado por um rito, e representa um rito significante de um mito, e ambos, rito e mito, são formas elementares de religião e arte. Também já dissemos que «elementar» só aponta para o que cremos que seja «elemento» de que vive e em que vive a «forma elementar» do que quer que seja. [EudoroMito:171-172]