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Geviert

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Fala-se dos Quatro, do Quadrado e da Quadratura. A quadratura é a construção do quadrado, o quadrado, certo modo de união, em figura geométrica, dos quatro; céu e terra, mortais e imortais. É interessante notar que, num fragmento de Crisipo  , também são estes quatro os ingredientes de uma diacosmese — a palavra, do filósofo estoico é mesmo essa: diakósmesis. Nem podia deixar de ser: não se pode imaginar que Gregos não estatuíssem qualquer «arranjo» universal (kósmos) em que não sobressaíssem céu e terra, homens e deuses. Mas, no mesmo fragmento, Crisipo também se refere à diacosmese, a cada diacosmese, como efetuada por qualquer um dos deuses a quem coube esse privilégio. Poderíamos supor, por conseguinte, que tantas diacosmeses existem, existiram ou venham a existir quantos os deuses a que, uma vez e outra, caiba o mister de realizá-las.

66. O filósofo do Pórtico reserva para os deuses uma posição inequiparável à do céu, terra e homens. A seu modo de ver, embora os deuses façam parte de um Kósmos, desse se aparta um de entre os outros que lá estão, como autor da diacosmese, isto é, da disposição e organização de um kósmos. Em Heidegger  , que nada quer saber de mitos, o «mundar do mundo» ocorre de maneira que nenhum dos Quatro seja mais do que o ponto de encontro de dois lados consecutivos do Quadrado. E quando vem a falar de Circulatura, imaginando, decerto, o Quadrado, inscrito num círculo, só confirma a não privilegiada situação de qualquer dos Quatro. Agora, o Círculo gira em ronda, e esta só faz que, contínua e sucessivamente, cada um dos Quatro ocupe a igual situação dos outros. Depois, ao entrar com o Jogo de Espelhos, e ao falar de «transpropriação» do que é próprio a cada um dos Quatro, isso significa, sem dúvida, que o mundo «mundado» é reflexão dos imortais nos mortais, no céu e na terra, reflexão simultânea à reflexão dos mortais nos imortais, no céu e na terra, e assim por diante, tudo, porém, no mesmo e único Jogo de Espelhos. Mas não vejo como isto pode decidir o significado daqueles «acenantes mensageiros da Divindade». As três possibilidades ficam só na possibilidade indiferente. Ou os deuses acenam para si mesmos, ou acenam para o ser de Deus, ou acenam para outra coisa que não está expressa naquelas tão poucas linhas. Ao que parece, Heidegger não pensou que suas palavras pudessem jogar-nos em tamanha perplexidade. Há, contudo, o seguinte: o contexto próximo daquele em que o filósofo fala dos «divinos» é o da referência singularizada a cada um dos Quatro. Portanto, não devemos [153] excluir a terceira possibilidade a que o aceno dos «divinos» seja precisamente para os três: céu, terra e os homens — o que mais nos lembra a «definição» de Crisipo. Concluindo, provisoriamente: os «divinos» são acenantes mensageiros da Divindade, mas o aceno, que podia ser para eles mesmos ou para o ser de Deus, também se pode supor que seja um acenar para um mundo. Apenas, esse mundo, assim acenado pelos deuses que acenam para si mesmos e para o Deus de que são mensageiros, é mensagem do Deus, e a mensagem é só o aceno dos mensageiros. Eles só podem acenar a mensagem, ou a mensagem só pode ser um aceno. Os acenantes acenam e o aceno faz-se mundo, o mundo de seu «oculto reinar». Um mundo é desocultação do oculto reinar dos deuses. Que estes sejam mensageiros da Divindade significa que o aceno-mensagem acena, no mesmo aceno, para baixo e para cima, para o mundo e para Deus. Mais uma vez se nos depara a Mediação da Trans-objetividade ou a Trans-objetividade como Mediação. Um mundo sem deuses não o seria: «a partir do oculto reinar dos deuses» é que «o Deus aparece no seu ser»; «ser», todavia, que se recusa a qualquer confronto com o manifestado pela mensagem-acenante. O mensageiro ainda não é, por e em si mesmo, Aquele que a envia.

67. Com isto, porém, não se esgotou todo o poder sugestivo desta curta passagem, das tão raras em que Heidegger, em seu não mais que filosoficamente pensar, menciona deuses que, a modo como a interpretamos, se constituem em intermediários entre Deus e um mundo que, só pela presença deles, bem pode dizer-se que seja um mundo trans-objetivo, uma representação, no pleno sentido da palavra, da trans-objetividade. Desta, há muito que vimos falando. Não excluo a possibilidade de algumas reminiscências (de que, em verdade, não estou consciente) terem influído na redação destas páginas. Nem posso excluí-la de todo, posto que me decidi a reler o texto original de Heidegger, a corrigir a primeira versão, e a incluí-la, por inteiro, no apêndice. Prosseguiremos. Mas antes cabe, embora muito fora da ordem de uma exposição linear, uma observação importante. Tudo o que para trás escrevemos leva a crer que o simbólico se constitua apenas de homem, mundo e deus, no triângulo em que «homem» e «mundo» estão nos ângulos opostos da base, e «deus», no vértice. Está certo, mas este símbolo é só o que, raras vezes, neste texto, se designa por «Macro-Símbolo», o que levaria a contrapor-lhe a existência de «micro-símbolos». E, efetivamente, não poucas [154] vezes aludimos a estes, sem uma palavra de esclarecimento. Digamo-la agora. Tudo, todas ou a maioria das coisas, elevadas ao nível de trans-objetividade, podem ser símbolos — micro-símbolos —, quando nelas vemos repetir-se a triangulação do Macro-Símbolo, quando, na sua transparência, nos aparece a parte que é do homem, a parte que é do mundo, a parte que é de um deus. Essas são precisamente as coisas feitas pelo homem, ou criadas pela natureza, que intervém num drama ritual, porque, sem dúvida, em cada uma se intersecciona o que é do homem, o que é do mundo e o que é de um deus, ou de Deus. [EudoroMito:152-155]


HEIDEGGER: GEVIERT