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Suzuki (DZNM:36-38) – natureza-própria ou Ser-em-si (tzu-hsing)
sábado 17 de setembro de 2022
A natureza do em-si é conhecimento de si mesmo ;não é meramente ser, mas conhecer. Podemos dizer que ela existe por causa do conhecimento que tem de si mesma. Conhecer é ser e ser é conhecer. É esse o significado da afirmação feita por Hui-neng: “Na própria natureza original existe conhecimento Prajna e, por essa razão, o conhecimento de si mesmo. A natureza reflete-se em si mesma e isso é auto-iluminação, inexprimível em palavras” (§ 30). Quando Hui-neng fala do conhecimento Prajna como se este nascesse da natureza-própria (§ 27), isso se deve ao modo de pensar que prevalecia naquela época, que muitas vezes nos envolve numa situação complicada, resultando no dualismo entre a natureza-própria e o Prajna — o que está em completo desacordo com o espírito do pensamento zen de Hui-neng. Devemos, portanto, ficar de sobreaviso ao interpretarmos o T’an-ching no que diz respeito à relação entre o Prajna e a natureza-própria.
Seja como for, acabamos de examinar o ponto de vista mahayanista sobre o Dhyana e chegamos agora ao Prajna, que deve ser explicado à luz do Dhyana. Antes, porém, desejo dizer mais algumas palavras sobre a natureza-própria e o Prajna. Os eruditos valeram-se de três conceitos da filosofia maháyána para explicar a relação entre uma substância e sua função. Corpo (tai), Forma (hsing ) e Uso (yung ). Esses conceitos aparecem inicialmente na obra O Despertar da Fé no Mahayana, geralmente atribuída a Asvagosha. O Corpo correspondente à substância; a Forma à aparência e o Uso à função. A maçã é um objeto avermelhado de forma redonda; essa é a sua Forma, pela qual a maçã apela aos nossos sentidos; a Forma pertence ao mundo dos sentidos, isto é, à aparência. O Uso inclui tudo o que a maçã faz e representa: seu valor , sua utilidade , sua função etc. Finalmente, o Corpo da maçã é o que constitui o “ser-maçã”, aquilo sem o que a maçã deixa de ser maçã; maçã alguma o é sem aquilo, mesmo tendo todas as aparências e funções próprias da maçã. Estes três conceitos — Forma, Corpo e Uso — precisam ser levados em conta quando se considera um objeto real.
Aplicando esses conceitos ao nosso objeto de estudo, temos que a natureza-própria é o Corpo, Prajna é o Uso; nada corresponde à Forma, pois o sujeito não pertence ao mundo da forma. Existe a natureza de Buda , diria Hui-neng, que constitui a razão do estado de Buda; e isso está presente em todos os seres, constituindo a natureza-própria de todos eles. O objetivo da disciplina zen é reconhecer isso, libertar-se do engano que são as paixões. Mas, pode-se perguntar, como é possível reconhecê-lo? É possível porque a natureza-própria é conhecimento de si mesmo. O Corpo é não-corpo sem o seu Uso; o Corpo é o Uso; ser o que se é, é conhecer a si mesmo. Pelo Uso que faz de si, seu ser é demonstrado e esse uso, na terminologia de Hui-neng, significa “ver dentro da natureza de si mesmo”. As mãos não são mãos, não têm existência de mãos se não colhem flores e as oferecem ao Buda; também as pernas não são pernas, ou entidades, a menos que se faça Uso delas e elas atravessem a ponte, vadeiem o rio, subam a montanha . Assim, depois de Hui-neng a história do Zen desenvolveu essa filosofia do Uso até as últimas consequências; pobre do discípulo que fizesse perguntas: levava bofetões, pontapés e tapas, ouvia insultos, tudo levando a uma triste perplexidade compartilhada pelos inocentes circunstantes. A iniciativa desse tratamento “bruto” para com os aprendizes vem de Hui-neng; no entanto, parece que ele se absteve de dar tais aplicações à filosofia do Uso.
Quando dizemos “ver dentro da natureza-própria”, esse “ver” pode ser interpretado como mera percepção, mero conhecimento, mera reflexão estática sobre a natureza-própria — a qual é pura e imaculada, conservando essas qualidades em todos os seres, como também em todos os Budas. Sem dúvida, Shen -hsiu e seus seguidores interpretavam o “ver” dessa maneira. Mas, na realidade, “ver” é um ato, é um feito revolucionário da compreensão humana, cujas funções sempre se acreditaram ser a análise lógica das ideias, ideias percebidas em sua significação din âmica. O “ver”, tomado especialmente no sentido de Hui-neng, é muito mais do que um feito passivo de “olhar para algo”, ou mero conhecimento obtido pela contemplação da pureza da natureza-própria; “ver”, para ele, é a natureza-própria, exposta em toda a sua nudez diante dele, funcionando sem restrições. Aqui, observamos a enorme distância que separava a Escola do Dhyana, do norte , e a Escola do Prajna, do Sul.
A escola de Shen-hsiu dá mais atenção ao aspecto Corpo da natureza-própria e recomenda a concentração dos esforços para a limpeza da consciência, de modo a que se possa ver nela o reflexo da natureza-própria, pura e imaculada. Evidentemente, ela esquece que a natureza-própria não é algo cujo Corpo possa se refletir na consciência — tal como uma montanha pode refletir-se na superfície de um lago tranquilo. Não existe um tal Corpo na natureza-própria, pois o Corpo é o Uso; sem o Uso, não existe Corpo. E por esse Uso entende-se o Corpo ver a si mesmo em si mesmo. Com Shen-hsiu, essa autovisão ou esse aspecto Prajna da natureza-própria não é levado em conta. A posição de Hui-neng, ao contrário, enfatiza o aspecto Prajna que podemos conhecer da natureza-própria.
Ver online : D. T. Suzuki