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Chittick (SPK:1.1) – Ser e não-existência (II)

terça-feira 4 de outubro de 2022

      

Deus   é puro Ser, Plenitude   absoluta, Consciência pura. Qualquer entidade no cosmos é, na melhor das hipóteses, um reflexo indistinto de algumas dessas qualidades. Ibn Arabi   comumente emprega o termo “existente” (mawjud) para se referir às coisas existentes, um termo que, através de sua forma gramatical derivada, sugere a natureza derivada da existência que é atribuída às coisas. Como ficará claro quando discutirmos as “entidades imutáveis” (al a’yan al-thabita), essa atribuição   de existência às coisas é, em todo caso, um modo de falar mais do que uma descrição estrita da situação real. De fato, a existência é apenas o brilho refletido do Ser, e há apenas um único Ser, o próprio Deus.

Deus é Luz, como afirma o Alcorão (24:35). Como tantos outros pensadores muçulmanos, pelo menos desde o tempo de al-Ghazali, Ibn Arabi identifica a Luz   com o Ser   e emprega o simbolismo da luz visível para explicar a relação entre o Ser e a inexistência. Deus é Luz e nada mais que Luz, enquanto as coisas são tantos raios   refletidos da substância da Luz. Em um aspecto eles são Luz, já que nada mais pode ser encontrado; em outro aspecto, são trevas, pois não são idênticas à própria Luz. Mas a escuridão não tem uma realidade positiva própria, pois sua característica definidora é a ausência de Luz. Da mesma forma, a característica definidora de cada coisa existente é sua ausência de Ser. Embora reflita o Ser em um aspecto, é inexistente em outro. Ele/não Ele.

Ser ou Luz é aquilo que por sua própria natureza se encontra, embora não possa ser percebido – isto é, abarcado, englobado e compreendido – por “outros”. Primeiro, porque não há nada além da Luz que possa fazer a percepção. Existe apenas a Luz, que percebe a si mesma. Segundo, porque se aceitarmos que certas coisas “existem”, ou que há raios de luz brilhando em uma área que podemos chamar de Vazio  , essas coisas ou raios só podem perceber a si mesmos ou a seus semelhantes, não algo infinitamente maior do que eles mesmos. que são apenas reflexos turvos. A sombra não pode perceber a luz do sol, e a luz do sol não pode abarcar o sol  . Só o sol conhece o sol. “Ninguém conhece a Deus além de Deus.”

Como a multiplicidade surge da Unidade  ? Ser é Unidade, enquanto o nada   como tal não existe em nenhum aspecto. Mas já sabemos sobre o Ser que Ele é Luz, então Ele irradia e se dá. Portanto, temos três “coisas”: Luz, esplendor e escuridão; ou Ser, existência, não existência. A segunda categoria brilho ou existência é nossa preocupação particular, pois define nossa localização para todos os propósitos práticos. A sua característica mais evidente   é a sua situação ambígua, a meio caminho   entre o Ser e a inexistência, a Luz e as trevas,

Ele e não ele. Ibn Arabi às vezes chama de existência, e às vezes de inexistência, pois cada atributo se aplica. A inexistência” pode, assim, ser vista como de dois   tipos básicos: a inexistência absoluta (aladam al-mutlaq), que é o nada puro e simples, e a inexistência relativa (al-adam   al-idafi), que é o estado   das coisas considerado como Não Ele.

Nossa classificação dos tipos de realidade tornou-se gradualmente mais complexa.

Começamos com Ser e existência, depois olhamos para Ser e não existência, depois para Ser, existência e não existência, e agora nos voltamos para uma quarta imagem da estrutura   básica da realidade: Ser, não existência relativa e não existência absoluta; esta última podemos chamar “nada”. Somente o Ser é verdadeiramente, enquanto o nada não tem existência exceto de um tipo puramente especulativo e mental  . Assim, “tudo que não seja Deus” – o cosmos – é uma não existência relativa. Mas qualquer coisa que seja relativamente não existente também é relativamente existente.

A pluralidade e a multiplicidade surgem da própria natureza da existência (poderíamos dizer também, da própria natureza da não existência, mas então a discussão tomaria um rumo diferente; essa perspectiva surgir  á no devido tempo). É claro para todos que o “brilho” não é de uma única intensidade. Alguns brilhos são mais fortes, outros mais fracos; alguns estão mais próximos da luz, outros mais distantes. Também podemos dizer que alguns existentes são mais intensos que outros, mas aqui o ponto não é tão óbvio. Para esclarecer o ponto, é melhor falar não sobre o próprio Ser, mas sobre os atributos do Ser, ou seja, aquelas qualidades que são denotadas pelos nomes divinos  , e examinar como elas se refletem na existência.

Tomemos “des-encobrimento  ”, por exemplo, que é idêntico à conscientidade   e ser/estar-ciente, ou ao “conhecimento” como atributo divino (e também como atributo humano no contexto dos textos sufis). Deve ser óbvio que algumas pessoas são mais conscientes do que outras, algumas mais conhecedoras do que outras. Esta é a doutrina   de tafidul de Ibn Arabi, “classificação em graus de excelência”, ou “alguns sendo preferidos a outros”, ou “alguns superando outros”. O termo é derivado de versículos do Alcorão como: “Deus fez com que alguns de vocês superassem outros em provisão” (16:71). O conhecimento está entre as maiores bênçãos que Ele proveu para Suas criaturas, mas Ele não o deu a todos igualmente. O Alcorão diz: “Nós [Deus] elevamos em graus quem quisermos, e acima de cada um que possui conhecimento há alguém que sabe (mais)” (12:76). E questiona, “São iguais — aqueles que não sabem?” (39:9).

A existência ou o cosmos é um vasto panorama de classificação em graus em todas as qualidades e atributos concebíveis. Não há duas coisas exatamente iguais. Duas coisas devem diferir em pelo menos um atributo, ou então seriam a mesma coisa. Os atributos dependem do Ser, embora ganhem coloração específica do nada. Sem primeiro existir, uma coisa não pode ser grande ou pequena, inteligente ou ignorante, viva ou morta. Sem luz, não pode haver vermelho, verde ou azul. Para onde quer que olhemos, vemos hierarquias de atributos. Se alguém sabe, alguém sabe mais e alguém menos. Dois existentes não sabem exatamente a mesma coisa ou a mesma quantidade. Se partilhássemos do conhecimento infinito   de Deus, seríamos capazes de discernir uma hierarquia das coisas conhecidas na criação por toda a eternidade  , do menos conhecedor ao mais conhecedor. Cada coisa individual em qualquer ponto da trajetória de sua existência se encaixaria em um nicho específico na hierarquia. E a mesma coisa pode ser dita sobre cada atributo que pertence ao Ser, bem como sobre aquela unidade global dos atributos manifestos do Ser conhecido como “existência”. Há uma gradação na intensidade da existência – ou luz – a ser percebida em todas as coisas. Não há duas coisas exatamente iguais no grau ou modo de sua existência.


Ver online : William Chittick – The Sufi Path of Knowledge