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Harada (Eckhart) – communicatio
quinta-feira 13 de outubro de 2022
Comentário a Eckhart (T:PI:17) — Permanecer em paz
Essa ab-soluta proximidade de Deus da sua criatura, considerada a partir de Deus, se chama communicatio (comunicação). Trata-se da comunicação, a saber, da incondicional doação de si de Deus, do ser de Deus à criatura. Como Deus é o ser , ipsum esse (o próprio ser), a plenitude do ser, de tal sorte que fora, ao lado, para além ou para aquém Dele em se dando a si todo, nada há que seja ser, sugere a pergunta: como é possível, pois que haja criaturas como entes? As criaturas, que realidade possuem, se fora de Deus não pode ser senão nada ? Como, porém, os entes criados são, constituindo a imensidão do universo criado, é necessário permitir que elas sejam de algum modo. Assim, atribuímos às criaturas uma entidade, mas entidade de participação no ser de Deus. Participação significa ter parte, tomar parte.
Usualmente se diz que esse binômio communicação-participação é para não se cair no panteísmo, ao falar do relacionamento Deus e criatura. Certamente, o medieval cuidava com muito rigor que a explicação do relacionamento Deus e criatura fosse livre de panteísmo. Mas esse cuidado não significava de modo algum o receio de aproximar Deus demasiadamente da criatura, mas pelo contrário o medo de afastá-lo, a Ele e a criatura, do ser próprio da proximidade, da imediata intimidade sui generis desse relacionamento inominável. O medo do pensamento medieval expresso no combate ao panteísmo é o receio de reduzir o sentido do ser próprio da realidade chamada Deus-criatura a um outro sentido do ser, inadequado e impróprio ao seu nível de intensidade, inconveniente ao da região das substâncias simples. Nesse sentido, para o medieval, o problema do panteísmo parece surgir somente se não se tiver suficiente sensibilidade ontológica, i.é, senso de diferenciação pelo sentido do ser operante na fala do relacionamento Deus e criatura. Se o sentido do ser ali operante for o do ser na acepção do ser físico-coisal quantitativo, então o relacionamento entre Deus como o ser absoluto e a criatura como o ser em parte resulta na relação de coisa e coisa, cuja diferença é apenas de quantificação, o todo de um lado e o em parte, de outro. Aliás, numa tal colocação, de modo algum se dá relação, muito menos, relacionamento, pois tanto Deus como criatura são reduzidos à coisa, de tal sorte que aqui nem sequer dá-se o toque “entre” coisa e coisa. Esse modo de o homem se entender, e a tudo quanto de alguma forma está referido a ele é resultado da dominação de um determinado sentido do ser, denominado coisal, a partir e dentro do qual o homem se posiciona como esta coisa-sujeito e agente da relação que ele lança sobre aquela coisa-objeto chamado Deus, do cujo ser ele, o homem, participa. Como ser aqui é entendido como ser-coisa, coisa aqui e coisa lá, por mais que se diga serem diferentes, a coisa divina e a coisa criatural, esta coisa, finita e aquela infinita etc., são feitas do mesmo elemento . Surge a perspectiva do panteísmo que na realidade deveria ser chamado de panrealismo.
Repetindo com outras palavras: os termos communicatio e participatio são termos usados pelo pensamento medieval para viabilizar a proximidade do relacionamento Deus-criatura, salvaguardando a absoluta alteridade de Deus, a sua aseidade; o reconhecimento do a priori de que o seu ser é a plenitude do ser, de tal modo que “fora” de Deus não há ser, nem sequer nada, enquanto este ainda de alguma forma pode ser predicado pelo verbo ser [1]. Mas ao mesmo tempo, com essa afirmação, sob o termo participatio, tenta-se salvaguardar a in-seidade da criatura, e evitar que criatura seja apenas um prolongamento de Deus. A criatura é um ente in se, não in alio, embora seja totalmente ab alio e não a se como Deus. Nesse sentido, criatura não é o ser de Deus, nem Deus o ser da criatura, não porque ela é finita e Deus infinito , mas porque o sentido do ser aqui operante não faz jus nem a Deus nem à criatura. Nessa estranha situação expressa nos termos Communicatio e participatio não se trata, como há pouco foi dito, do medo do panteísmo. Antes é medo de ser entendido como panteísmo, não porque não guarda a distancia entre Deus e criaturas, mas porque uma tal igualação coisificante de dois entes, a partir e dentro de um sentido do ser de densidade bem rarefeita, é inadequada para uma igualdade absoluta entre Deus e criatura, cuja proximidade e imediatez de Deus na criatura e da criatura em Deus somente pode ser realidade num sentido do ser, cuja palavra originária diz pessoa [2].
Segundo a observação de Sto. Tomás, mencionada no início desse comentário a definição de Boécio – persona est naturae rationalis individua substantia – aplicada às pessoas divinas, pode ser modificada pela sugestão de Sto. Tomás em: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia. Em Boécio: substância individua se refere às criaturas. Em Santo Tomas: substância incomunicável se refere a Deus, não enquanto natureza, mas enquanto pessoa. Examinemos brevemente em que consiste a individualidade do indivíduo e da sua individuação, e em que consiste a incomunicabilidade da pessoa divina e da sua processão. Pois aqui no termo “pessoa” aparece a conotação da indivisibilidade [3] e incomunicabilidade [4], como nitidez da perfilação da substância enquanto ens in se, de tal modo que nessa definição da pessoa se acentua mais a distância do que a proximidade no relacionamento Deus e criatura [5].
Ver online : Hermógenes Harada
[1] A partir de Deus, ele é todo o ser, de tal modo que se “fora de Deus ainda houver algo que seja ser, ou esse ente não é senão apenas uma quimera ou Deus não é Deus. As criaturas seriam nessa perspectiva como palavras que saem da boca de Deus, é de Deus: comunicação de Deus.
[2] Aqui pessoa não deve ser entendida como sujeito, mas sim como o ontologicum, o sentido do ser que inaugura uma dimensão do ser, cuja intensidade e pregnância do ser deixa ser de modo mais claro e evidente o próprio dos entes pertencentes à região do ser das assim chamadas substâncias simples ou dos espíritos. Se, porém, não tematizamos o sentido próprio do ser denominado pessoa, e permanecemos sempre de novo debaixo da conotação do ser da entificação coisal, podemos raciocinar: se aqui Deus é tudo e nós nem sequer “parte” como um ente em si fora de Deus, talvez houvesse uma única possibilidade de criatura ser, em sendo como Ele, doação absoluta de si inteira e totalmente no receber. Isto significaria que participar do ser de Deus não é outra coisa do que ser pura e simplesmente nada a não ser apenas pura recepção, a tal ponto de aqui não há um sujeito que recebe, mas apenas o receber. Mas um tal receber seria então não algo fora de Deus mas sim um momento da própria doação absoluta de si que é Deus. A situação aqui é um tanto estranha. Pois no pensamento medieval, somente Deus é, no sentido de ser ele ipsum esse, i. é, Deus e ser coincidem. Se é assim, o que são criaturas? Se são só em parte, como é possível que de alguma forma sejam como participantes, existentes fora de Deus, diferentes Dele. E, se são, há somente um modo de ser, a saber, uma parte, um momento, um algo Dele, Nele...
[3] Pessoa como substância indivisível, da natureza racional, i.é, do homem (criatura).
[4] Pessoa como substância incomunicável, da natureza intelectual, i.é, do Filho Unigênito do Pai. Os medievais caracterizavam a imagem e semelhança de Deus na alma, referindo a memória ao Pai, intelecto ao Filho e vontade (coração, afeto) ao Espírito Santo.
[5] Talvez uma vez a partir e dentro do ontologicum, i. é, do sentido do ser próprio dessa dimensão em questão no nosso comentário, portanto do sentido do ser pessoa, indivisibilidade e incomunicabilidade da inseidade substancial, longe de ser distanciamento, é propriamente a condição da possibilidade de proximidade, de uma proximidade tal que Eckhart chama sem mais de igualdade.