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Sonho de Cipião

sexta-feira 25 de março de 2022

      

Entre os textos de Cícero   destaca-se como único por seu alcance religioso, ou melhor dito, filosófico-religioso, o chamado Somnium Scipionis (O sonho   de Cipião). Trata-se da narração - posta na boca de Cipião Emiliano - de um sonho, no qual aparece a Cipião seu pai  , Cipião o Africano. Do alto, o pai mostra Cartago a seu filho, e vaticina a vitória deste sobre a cidade dentro de dois   anos (e posteriormente a vitória sobre Numância). Acrescenta que o filho regressará em triunfo ao Capitólio, e que encontrará uma cidade completamente sublevada. Será necessário, então, aportar a luz   da alma  , da inteligência e da prudência. Para animá-lo, o Africano mostra a Cipião Emiliano o destino das almas que serviram bem a sua pátria e praticaram a piedade   e a justiça. Estas almas moram na Via-Láctea presididas pelo princips deus  , ou deus soberano. É um universo   magnífico e admirável, dividido em nove esferas, as quais produzem com seus movimentos uma harmonia   divina. Na esfera   celeste - a mais externa, que circunda todas as demais e onde estão fixadas as estrelas - vive o deus soberano. Sob esta. esfera há outras sete   que se movem em sentido inverso ao do céu. No círculo inferior   gira a Lua  ; debaixo dela há o mundo sub lunar, onde não existe nada que não seja mortal   e decrépito, exceto as almas dos homens. Estas vivem, na nona e última esfera, a Terra  , que não se move e é concêntrica às demais. Agora, para alcançar a piedade e a justiça é mister voltar a vista ao plano superior, às esferas supralunares, onde nada é decrépito ou mortal. A alma se acha ligada por sua parte superior a estas esferas, e somente poderá regressar efetivamente a elas, como sua verdadeira pátria, quando esqueça a caducidade dos bens materiais e das falsas glórias terrenas, ou seja quando se dê conta de que estar encerrada em um corpo mortal não quer dizer que ela mesma seja mortal. A alma imortal move o corpo mortal como Deus move um mundo sob certos aspectos destinados à morte. É preciso exercitar, pois, a alma nas mais nobres ocupações, e as mais nobres de todas são as orientadas no sentido da salvação da pátria. As almas que cumpram esta sublime missão ser  ão recompensadas com a ascensão às esferas celestes, enquanto que as que se entregam aos prazeres dos sentidos permanecerão na superfície da terra e não ascenderão senão depois de serem atormentadas durante séculos.

Discutiu-se muito a origem   destas ideias. Alguns autores assinalam que se originam de Posidônio; outros negam semelhante procedência. O quadro de Cícero (com a única exceção do motivo cívico a serviço da cidade) corresponde a muitas das ideias que em sua época foram abrindo caminho  , e que têm, por um lado, pontos de contato com as religiões astrais; por outro, pontos de contato com a tendência, a elaborar as concepções platônicas; e por outro, ainda, com uma visão do cosmo como sendo uma grande harmonia, como um templo  , no qual habitam como cidadãos as almas virtuosas. Semelhantes ideias exerceram bastante influência sobre autores posteriores, entre os quais se destacou Macróbio.

É mister observar   que um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da vida individual neste mundo, comparada com a imensidade do cosmo. O tema está igualmente desenvolvido no Livro VI da Eneida (revelação de Enéas a Anquises) e em alguns escritos estoicos   (por exemplo, em Sêneca, Ad Marciam de consolatione, XXI).

José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia (ed. de 1958)