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Boehme (3PED:352-355) – sobre a partida da alma (1)

quarta-feira 19 de outubro de 2022

      

17. Visto que o homem   é tão terrestre, então quase que só tem uma inteligência terrestre, a menos que seja regenerado nas portas das profundezas. Ele sempre supõe que a alma  , no momento da morte do corpo, simplesmente sai da boca, e não compreende nada de suas profundas essências acima dos [1] elementos  . Se vê um raio   azul sair da boca de um homem no momento de sua morte (que produz um forte   odor em todo o quarto), então presume que é a alma.

18. Oh, não, querida razão! Isto não é a alma. Ela não é visível nem apreensível nos elementos exteriores. Isto é o espírito de enxofre, o espírito do terceiro princípio. Assim como quando apagas uma vela, uma fumaça e um mau cheiro que não eram sensíveis quando a vela ardia se desprendem dela, assim também ocorre aqui: quando a luz   do corpo se quebra, o espírito de enxofre sufoca, de onde procedem esse vapor e esse odor mortal  , com seu ativo veneno.

19. Entende bem isso: é o espírito manante [ou ativo] do fel que inflama o coração   (com o que a vida é estimulada) que se sufoca quando a tintura se extingue no sangue   do coração. A verdadeira alma não tem necessidade   de nenhuma partida como essa: ela é muito mais sutil   do que o espírito do enxofre, embora durante o tempo do corpo tudo esteja num único ser.

20. No entanto, quando o espírito dos quatro elementos se separa [do corpo], então a verdadeira alma, que foi insuflada em Adão  , permanece em seu princípio [2]; pois ela é tão sutil que nada pode apreendê-la: atravessa carne   e ossos, e também madeira   e pedras, e não quebra nenhuma dessas substâncias.

21. Eis o que pode retê-la: se durante o tempo do corpo ela prometeu alguma coisa e não lembrou, então essa mesma palavra e essa séria promessa apreendem-na. Sobre isso, calaremos aqui. Exceto isso, nada a apreende, a não ser   o próprio princípio em que está — seja o reino do Inferno ou o reino do Céu.

22. Ela não parte pela boca, como uma substância corpórea: ela é nua, sem corpo. No momento da separação   dos quatro elementos, ela vai imediatamente para o centrum, para as portas das profundezas. E aquilo com que está vestida [ou coberta], isso a apreende e a retém. Se o tesouro   dela é a volúpia, o poder, as honras, a riqueza, a maldade, a cólera, a mentira  , a falsidade deste mundo, então a poderosa força das essências do primeiro princípio apreende essas coisas pelo espírito sidérico [ou astral], retém-nas e assim opera segundo a região [3] das estrelas. Contudo, a região [princípio ou reino] das estrelas não pode levar o espírito da alma à sua própria forma [4], mas faz dele seu bobo, e assim não há repouso algum em seu verme [5], de modo que seu verme de alma está [353] suspenso ao seu tesouro, como Cristo   disse: “Onde está teu tesouro, lá também está teu coração” [6].

23. Por isso muitas vezes ocorre de o espírito de um homem falecido ser visto caminhando, ou correndo com uma verdadeira forma de fogo  , ou com outras formas, o que não revela a fixação [ou o repouso], mas a inquietude. Tudo aquilo com que a alma esteve vestida no tempo de seu corpo, torna-se também seu estado   posterior  , e depois da separação do corpo [7] ela tem uma forma semelhante em sua figura, conforme esse estado. E assim ela cavalga nessa forma, na fonte [ou regime] das estrelas, até que essa fonte [ou regime] também seja quebrada. Então, encontra-se inteiramente nua e não é mais vista por homem algum, mas o abismo   profundo, sem fim e sem número   é sua morada   eterna, e suas obras, que ela operou aqui, subsistem em figura na tintura dela e a seguem.

24. Ela fez o bem aqui? Então se alimentará desse bem, pois todos os pecados subsistem diante dela, em sua tintura. Se está reduzida a só poder se lembrar do reino do Céu, sem no entanto conhecê-lo nem vê-lo, então vê as razões pelas quais está numa tal miséria, pois foi ela mesma que a causou. Todos os dolorosos lamentos dos que foram oprimidos e afligidos [por ela] estão em sua tintura, e são ígneos, pungentes, ardentes de inimizade, roendo-se em si mesmo   e produzindo nas essências uma dúvida eterna e uma vontade hostil a Deus  : quanto mais pensa na emenda, mais o verme roedor se eleva em si mesmo.

25. Pois ali não há luz alguma, nem deste mundo, nem de Deus. Sua luz é a inflamação de seu próprio fogo em si mesmo, que consiste num pavoroso relâmpago de cólera, o qual é, em si mesmo, uma inimizade. Contudo, o tormento é muito diversificado, tudo conforme aquilo que a alma carregou aqui. Para uma tal alma, não há remédio algum: ela não pode ir para a Luz de Deus; e mesmo que São Pedro   tivesse deixado muitos milhares de chaves na Terra  , nenhuma poderia abrir o Céu para ela, pois está separada da aliança de Jesus Cristo. Há uma geração ou [354] região [8] inteira entre ela e a Divindade  , e é como com o homem rico [9]: aqueles que querem vir de lá para cá [10] não podem fazê-lo. Todavia, isso deve ser entendido das almas impenitentes, que se separam de seus corpos na hipocrisia, sem estarem regeneradas. [Boehme3PED, tr. Sommerman]


Ver online : Jacob Boehme


[1Ou superiores aos, ou mais elevadas que.

[2Ou reino.

[3Reino, princípio ou regime.

[4Ou à forma que lhe é própria.

[5No verme da alma ou do espírito da alma.

[6Mateus 6: 21.

[7Terrestre.

[8Ou princípio.

[9Lucas 16: 19 ao 31.

[10Isto é, o rico atormentado que está no Inferno e quer vir à Terra avisar os vivos para não fazerem o mal que ele fez durante sua vida na Terra. Ele não só não pode vir avisá-los, mas Deus lhe diz que mesmo que alguém voltasse da morte e testemunhasse do que há além, as pessoas incrédulas não acreditariam, pois não acreditaram nos profetas e nos apóstolos (cf. Lucas 16:19-31).