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Coomaraswamy (AKCcivi:88, 90-92) – Notas sobre a reencarnação
sábado 12 de novembro de 2022
Em diversos textos importantes, o renascimento é explícito e categoricamente definido em termos de hereditariedade e provavelmente este é o único sentido em que se imagina o indivíduo voltando ao plano de existência de onde sai ao morrer . Quanto ao morto, está expressamente estabelecido que não é mais visto aqui (Satapatha Brahmana XIII.8.4.12, etaj, jiva ’s ca pitaras ca na samdrsyante e partes de Satapatha Brahmana, sakrd parancah pitarah).
Temos também em Rg Veda VI. 70.3: "Ele nasce na sua progênie segundo a lei" (pra prajabhir jayate dharmanas pari); Aitareya Brahmana VII. 13: "O pai entra na esposa , que é a mãe, transforma-se em embrião e começa uma existência nova, nascendo de novo dela". (Jayam pravisati, garbho bhutva, sa mataram, tasyam punar navo bhutva jayate; cf. Atharva Veda Samhita XI. 4.20); Altareya Aranyaka II, 5: "No sentido em que ele, tanto antes como depois do nascimento, faz o filho que virá a existir (sa yat kumaram ... adhibhavayati), é apenas ele mesmo como filho que ele faz existir (Kumaram... adhibhavayaty atmaname va)"; Chandogya Upanixade III.17.5: "Ele procriou, esse é o seu renascimento", (asosteti punar-utpadanam); Brhadaranyaka Upanixade III, 9, 28: "Ele (o morto) de fato nasceu, mas não nasceu de novo, pois (estando morto), quem está aí para gerá-lo de novo?" (jata eva na jayate, ko nv enam janayet punah). Temos também Brhadaranyaka Upanixade II.2.8 em que a filiação é renascimento "num semelhante" (pratirupah). Seria impossível dar uma definição mais clara do significado comum de reencarnação. Além do mais, esta Reencarnação filial é exatamente o antapokataotasis ou "renovação das coisas por substituição", como dizia Hermes e como foi explicado por Scott (Hermetica II, 322): "O pai vive de novo no filho e, embora os indivíduos morram e não voltem nunca mais, a raça é perpetuamente renovada".
Deveríamos acrescentar que, além do fato natural da reencarnação progenitiva, também existem uma comunicação e uma delegação formais da natureza e da condição social do pai no mundo, feitas quando o pai está à beira da morte. Por isso em Brhadaranyaka Upanixade I.5.17-20, quando foi feito este legado geral (sampratti), “o filho que foi induzido dessa forma (anusistah) é denominado ‘representativo mundano’ do pai (lokyah) e com isso ‘por meio do filho o pai ainda está presente (prati-tisthati) no mundo’”; vemos a mesma coisa em Kaus Up., Il. 15(10) em que o "legado total do pai para o filho" (Pitaputriyam sampradanam) está descrito com mais detalhes, legado segundo o qual se por acaso o pai se recuperar, tem de entrar vivo sob o jugo do filho ou se tornar um peregrino religioso (parivavrajet, isto é, tornar-se um parivrajaka morto para o mundo ao menos na forma exterior). [AKCcivi :Nota:88, tr. Smith Caldas]
Não dizemos que uma teoria da reencarnação (recorporificação do próprio homem e da verdadeira personalidade do morto) tenha jamais tido crédito na Índia ou em qualquer outro lugar; mas concordamos com René Guénon quando diz que "[essa teoria] nunca foi ensinada na Índia, nem mesmo pelos budistas, e é basicamente um conceito europeu moderno"; além disso, "nenhuma doutrina de reencarnação tradicional e autêntica jamais falou em reencarnação" (L’Erreur spirite, pp. 47 e 199).
Geralmente os eruditos modernos concordam que a doutrina da "reencarnação" não é uma doutrina védica e tem origem popular ou desconhecida, tendo sido adotada sem discussão já nos Upanishads e no budismo . Deixando o budismo de lado no momento, podemos dizer que quando temos de lidar com uma tese fundamental e revolucionária, e não com a simples expansão de doutrinas que já haviam sido ensinadas, do ponto de vista ortodoxo e hindu tradicional, seria inconcebível que o que não foi ensinado em uma parte do sruti pudesse haver sido ensinado em outra; sobre isso não se pode imaginar um hindu ortodoxo "escolhendo entre" o Rg Veda e os Upanishads, como se fosse possível um estar certo e os outros, errados. Essa dificuldade desaparece quando vemos que a teoria da reencarnação (distinguida das doutrinas da metempsicose e da transmigração) não é de fato ensinada nos Upanishads: quanto a isto chamamos particularmente a atenção ao que diz o Brhadaranyaka Upanixade IV.3,37 em que, quando uma entidade nova passa a existir, os elementos fatoriais desse novo composto não são obrigados a dizer "aqui vem Fulano ou Beltrano" (que já morreu) e sim "aqui vem o brâmane". Isso também concorda com o Milinda Panho 72 budista em que está afirmado categoricamente que nenhuma entidade jamais passa de um corpo para outro: apenas acende-se uma nova luz.
Ao diferenciar a reencarnação da metempsicose e da transmigração, como fizemos acima, podemos acrescentar que metempsicose é o aspecto psíquico da palingenesia ou, em outras palavras, é uma herança psíquica; e transmigração é uma mudança de estado ou de nível de referência que por definição exclui a ideia de uma volta a qualquer estado ou nível que já foi atravessado. A transmigração do "indivíduo" (atman = espírito) só pode ser distinguida como um caso particular da transmigração do paramatman (Espírito, Brâmane) para o que, no entanto, pode ficar claro que é desejável empregar algum termo como "peregrinação", substituindo a transmigração por peregrinação quando houver sido atingido o estado do kamacarin (Que se movimenta à vontade).
Sem dúvida há muitas passagens dos Upanishads e outras que, tiradas do seu próprio contexto, parecem falar de uma "reencarnação pessoal" e com isso foram mal compreendidas, tanto na Índia como na Europa. Cf. Scott, Hermetica, II, pp. 193-194, nota 6 (na primeira frase citada "ele" é o filho de Valerius e para as nossas finalidades é "Fulano ou Beltrano" ou Qualquer Pessoa; os itálicos são meus): "Enquanto viveu na terra ele foi uma porção distinta de pneuma , demarcado e separado do resto; agora aquela porção de pneuma, que era ele, está misturada com a massa toda de pneuma em que reside a vida do universo . Isso foi o que o escritor (Apolônio) talvez tenha querido dizer, se é que aderiu à doutrina estabelecida pela parte anterior da carta. Mas deste ponto em diante o autor fala de modo ambíguo e usa frases que, para um leitor que não tenha percebido completamente o significado da doutrina de Apolônio, poderiam dar a impressão de implicar uma sobrevivência do homem como pessoa individual e distinta".
A mente moderna tem um apego à "individualidade" e às "provas da sobrevivência da personalidade" e está predisposta a interpretar erradamente os textos tradicionais. Não deveríamos ler nesses textos o que apreciássemos ou esperássemos encontrar neles "naturalmente": deveríamos ler neles o que eles significam, mas "para nós é difícil renunciar às coisas conhecidas que nos cercam e voltar para o antigo lar de onde viemos um dia" (Hermes, Libellus (Hermes Trismegistus) IV.9).
Por mais que abracemos as cadeias da individualidade, esta é uma modalidade parcial e definida de existência: "Eu" é definido como "não-eu" e com isso é aprisionado. Com vista a uma libertação desta prisão e desta parcialidade que os nossos textos vivem demonstrando, a nossa individualidade mimada não é nem uniforme nem constante, é composta e variável, indicando que o mais sábio é quem pode dizer principalmente: "Não sou agora o homem que era". Isso é verdade na medida de todas as coisas werdende, mas o "fim da estrada" (adhavanah param) está além da "humanidade". Só podemos profetizar a perduração do que não é individual e é universal (cósmico) e só podemos afirmar a eternidade (sem antes nem depois) do que não é nem individual nem universal. [AKCcivi:Nota:90-91]
“Os que viveram completamente para os sentidos transformaram-se em animais ... o espírito da vida anterior paga a penalidade”. Tais como "transmigração para corpos de outra espécie", Hermes Trismegistus, Asclepius I,12a; cf. Brhadaranyaka Upanixade VI.2.16; Chandogya Upanixade V.10.7-8; Kaus, 1.2. Entendemos que o resultado de uma bestialidade existente em "nós" é que são propagados tipos bestiais: esta é a reencarnação de caráter no nosso sentido (1) e é deste modo que "os pecados dos pais aparecem nos filhos".
Além do mais, "bestas" é um símbolo, como ao dizermos: "Não seja besta" ou nos referimos a alguém como "verme" ou a uma mulher como "gata". A tradição indiana emprega regularmente esse tipo de linguagem: Altareya Aranyaka II.3.8 (um locus classicus; cf. a definição de "pessoa" dada por Boethius em Contra Evtychen, II), por exemplo, quando define o homem espiritual que "sabe o que é mundano e o que não é" etc. como uma "pessoa" (purusha ), e define "os outros", cujo saber é mera afeição, como "gado" (pasu). [AKCcivi:Nota:92]
Ver online : Ananda Coomaraswamy – O que é civilização?