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Schopenhauer (MVR2:763-766) – Vontade de Vida

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Na conclusão de minha exposição, gostaria ainda de dar lugar a algumas considerações sobre a minha própria filosofia. — Como já disse, ela não tem a pretensão de explanar a existência do mundo a partir dos seus últimos fundamentos: antes, detém-se nos fatos da experiência externa e interna, tais como são acessíveis a cada um, e demonstra a sua verdadeira e profunda coerência, sem no entanto ir para além desses fatos na direção de coisas extramundanas e suas relações com o mundo. Minha filosofia, por conseguinte, não tira conclusão alguma sobre o que existe para além de toda experiência possível, mas simplesmente fornece [II 734] a exegese do que é dado no mundo exterior e na consciência de si, satisfeita, portanto, em captar o ser do mundo, em captar a coerência deste consigo mesmo. Ela é, conseguintemente, uma filosofia IMANENTE, no sentido kantiano do termo. Justamente por isso ela ainda deixa muitas questões sem resposta, a saber, porque o que foi factualmente demonstrado é assim e não de outra maneira etc. Só que tais questões, ou antes as respostas a elas, são propriamente dizendo transcendentes, isto é, não podem ser pensadas por intermédio das formas e funções do nosso intelecto, não cabem nestas: o nosso intelecto está para aquelas assim como a nossa sensibilidade está para algumas características possíveis dos corpos, para as quais não temos sentido algum. Pode-se, por exemplo, após todas as minhas explanações, ainda perguntar de onde provém essa vontade, que é livre para afirmar-se, daí a aparência do mundo, ou negar-se, daí uma aparência que não conhecemos?, ou ainda, qual é a fatalidade para além de toda experiência que colocou a vontade na alternativa extremamente espinhosa de aparecer num mundo de sofrimento e morte, ou então de negar [II 735] a própria essência?, ou também, o que a levou a abandonar o repouso infinitamente preferível do nada abençoado? Uma vontade individual, pode-se acrescentar, pode direcionar a si mesma para a própria perdição só através de erro na escolha, logo, através da culpa do conhecimento: mas a vontade em si, anterior a toda aparência, consequentemente ainda sem conhecimento, como poderia pegar o caminho errado e cair na perdição do seu atual estado? De onde vem, em geral, a elevada dissonância que atravessa este mundo? Ademais, pode-se perguntar, quão fundo, na essência em si do mundo, descem as raízes da individualidade?, ao que se poderia em todo caso responder: elas descem tão fundo até onde alcança a afirmação da Vontade de vida; onde a negação da vontade entra em cena, elas param: pois elas brotaram com a afirmação. Mas também poder-se-ia colocar a questão: “O que eu seria, se eu não fosse Vontade de vida?”, e outras semelhantes. — A todas essas questões haveríamos antes de responder que a expressão da forma a mais geral e universal do nosso intelecto é o PRINCÍPIO DE RAZÃO, que este, contudo, precisamente por isso, encontra sua aplicação apenas nas aparências, não na essência em si das coisas: exclusivamente nele repousam todo “de onde” e “por que”. Em consequência da filosofia kantiana, o princípio de razão não é mais uma aeterna veritas, [1] porém meramente a forma, isto é, função do nosso intelecto, que, essencialmente cerebral, é originariamente um mero instrumento a serviço da nossa vontade, a qual, ao lado de todas as suas objetivações, é por ele pressuposta. As suas formas, entretanto, estão ligados todo o nosso conhecer e conceber: em consequência disso, temos de apreender tudo no tempo, portanto, mediante as noções de antes e depois, causa e efeito, acima e abaixo, todo e parte etc., e não podemos sair dessa esfera, na qual reside toda possibilidade de nosso conhecimento. Mas essas formas não são apropriadas aos problemas aqui levantados, nem aptas para capacitar-nos a apreender a sua solução, supondo-se que esta fosse dada. Assim, com o nosso intelecto, este mero instrumento da vontade, topamos em toda parte contra problemas insolúveis, como contra os muros da nossa prisão. — Ademais, pode-se ao menos admitir como provável que, em relação a tudo aquilo que foi questionado, é impossível um conhecimento [764] não apenas PARA NÓS, mas que tal conhecimento é em geral impossível, em todo tempo e lugar; a saber, que aquelas relações são insondáveis não apenas relativamente, mas absolutamente; que não apenas alguns as desconhecem, mas que elas são em si mesmas incognoscíveis, na medida em que elas em geral não cabem nas formas do conhecimento em geral. (Isto corresponde ao que Scotus Erigena diz, de mirabili divina ignorantia, qua Deus non intelligit quid ipse sit. [2] Liv. II.) Pois a cognoscibilidade em geral, com sua mais essencial, e portanto sempre necessária forma de sujeito e objeto, pertence tão somente à APARÊNCIA, não à essência em si das coisas. Onde há conhecimento, portanto, representação, ali também há apenas aparência, e ali já permanecemos no domínio da aparência: sim, o conhecimento em geral nos é conhecido apenas como um fenômeno cerebral, e estamos não apenas injustificados, mas também incapacitados para pensá-lo de outro modo. O que o mundo é como mundo consegue-se entender: ele é aparência, e podemos, imediatamente a partir de nós mesmos e devido a uma minuciosa análise da consciência de si, conhecer o que ali aparece: em seguida, graças a essa chave do ser do mundo, consegue-se decifrar toda a aparência em conformidade com suas conexões; como [II 736] eu acredito tê-lo feito. Mas se abandonamos o mundo, para responder às questões acima enunciadas, então também abandonamos todo o solo no qual é possível não só a conexão segundo fundamento e consequência, mas até mesmo o conhecimento em geral: tudo então é instabilis tellus, innabilis unda [3]. A essência das coisas antes ou para além do mundo e, por conseguinte, para além da vontade, é algo vedado a qualquer investigação; porque o conhecimento em geral é ele mesmo apenas fenômeno, por conseguinte, se dá apenas NO mundo, assim como o mundo se dá apenas nele. A essência íntima em si das coisas não é um cognoscente, não é um intelecto, mas algo desprovido de conhecimento: o conhecimento é adicionado tão somente como um acidente, um meio de ajuda da aparência daquela essência, conhecimento que só pode assimilar em si essa essência em conformidade com a sua própria índole, destinada a fins [765] bem diferentes (os da vontade individual), portanto, só pode assimilar essa essência de modo bastante imperfeito. Eis por que é impossível um entendimento pleno, até o último fundamento e que satisfaça toda demanda, da existência, essência e origem do mundo. É o suficiente sobre os limites da minha e de toda filosofia. —


Ver online : O mundo como vontade e como representação. Segundo Tomo.


[1“Verdade eterna.” (N. T.)

[2“A maravilhosa ignorância divina, devido à qual Deus não sabe quem ele mesmo é.” (RT.)

[3“Terra instável, água inavegável.” (N. T.)