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Schopenhauer (SFM:50-53) – desconstrução da fundamentação da moral kantiana

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

A censura que se coloca, em primeiro lugar e diretamente, à fundamentação da moral dada por Kant   é que esta origem da lei moral é impossível em nós porque pressupõe que o homem chegue, por si só, à ideia de procurar e de informar a respeito de uma lei para sua vontade, de ter de submeter-se a ela e conformar-se com ela. Isto, porém, não poderia ter vindo sozinho à sua cabeça, mas, quando muito, só depois que uma outra instigante motivação moral, positiva e real, anunciando-se por si mesma e agindo sem ser chamada, tenha dado para tanto o primeiro empurrão. Algo assim, porém, combateria a suposição moral de Kant, de acordo com a qual o processo de pensamento acima deve ser ele próprio a origem de todos os conceitos morais, o “punctum saliens” [o ponto de destaque] da moralidade. Enquanto ele não acontece, pois não há “ex hypothesi”, nenhuma outra motivação moral, a não ser o processo de pensamento já exposto, então só o egoísmo é que permanece o fio de prumo das ações humanas, através do fio condutor da lei da motivação; quer dizer, os motivos bem empíricos e egoístas determinam por si sós e sem interferência, em cada caso, o agir do homem. Assim, sob tal pressuposição, não se apresenta para ele nenhuma exigência e não há qualquer razão pela qual ele devesse ter a ideia de perguntar por uma lei que limitasse seu querer e à qual ele tivesse de submetê-lo, ainda menos a de indagar por ela e matutar sobre ela; somente por aí seria possível chegar ao especial processo de pensamento da reflexão acima. Aqui, dá no mesmo o grau de clareza que se quiser atribuir ao processo de pensamento kantiano ao se desejar talvez moderá-lo um pouco, transformando-o numa meditação obscuramente sentida. Pois nenhuma modificação impugna aqui as verdades fundamentais que dizem que nada surge de nada e que um efeito exige uma causa. Tal como qualquer motivo que impulsione a vontade, a motivação moral tem de ser simplesmente algo que se anuncie por si mesmo, por isso tem de ser positivamente agente e portanto real; e, como para o homem só o empírico ou o que porventura é empiricamente existente tem realidade pressuposta, a motivação moral tem de ser, de fato, empírica e, como tal, anunciar-se para nós sem ser chamada, chegar até nós sem esperar por nossa pergunta, impondo-se a nós com tal força que lhe permita ao menos possivelmente superar os motivos egoístas, gigantescamente fortes, que se contrapõem a ela. Pois a moral tem a ver com a ação efetiva do ser humano e não com castelos de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em meio ao ímpeto da vida e cuja ação, por isso mesmo, seria tão eficaz contra a tempestade das paixões quanto a de uma injeção para um incêndio. Já mencionei acima que Kant considerou como um grande mérito de sua lei moral o fato de que ela se fundasse meramente em conceitos abstratos puros “a priori” e, por conseguinte, na razão pura e que fosse válida não só para os homens, mas para todos os seres racionais como tais. Temos de nos lamentar pelo fato de que puros conceitos abstratos, “a priori”, sem conteúdo real e sem qualquer tipo de fundamentação empírica, nunca poderiam pôr em movimento pelo menos os homens, de outros seres racionais não posso falar. Por isso, a falta de conteúdo é o segundo erro da fundamentação kantiana da moralidade. Isto não foi notado até aqui, porque o acima claramente exposto fundamento próprio da moral kantiana só se tornou provavelmente claro por completo para poucos entre os que o celebraram e propagaram. O segundo erro é portanto a falta total de realidade e por isso de efetividade possível. Paira no ar como uma teia de aranha de conceitos, os mais sutis e vazios de conteúdo, não se baseia em nada e não pode por isso nada suportar e nada mover. E, não obstante, Kant removeu uma carga de peso infinito, a saber, a pressuposição da liberdade da vontade. Apesar da sua convicção expressa repetidamente de que a liberdade não pode ter simplesmente lugar nas ações humanas, pois ela não pode ser vista teoricamente, nem sequer de acordo com sua possibilidade (Crítica da razão prática, p. 168) – e de que, se fosse obtido um conhecimento preciso do caráter de um homem e de todos os motivos que agem sobre ele, a sua ação seria previsível, de modo tão seguro e preciso, como um eclipse da lua (idem, p. 177) –, a liberdade, contudo, só seria admitida meramente a crédito daquele fundamento da moral que paira no ar e, ainda assim, apenas “idealiter” e como um postulado, por meio da famosa conclusão: “tu podes, então tu deves”8. Mas, se foi claramente reconhecido que uma coisa não é e não pode ser, o que ajuda a postular tudo isto? Seria melhor rejeitar aquilo sobre o qual se funda o postulado, porque é uma pressuposição impossível de acordo com a regra “a non posse ad non esse valet consequentia” [o que não é possível também não é real] e também por meio de uma prova apagógica que aqui revogaria portanto o imperativo categórico. Ao invés disso, aqui é construída uma doutrina falsa sobre a outra.


Ver online : SOBRE O FUNDAMENTO DA MORAL