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Schopenhauer (MVR2:586-589) – imortalidade do indivíduo

terça-feira 14 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Se, portanto, considerações desse tipo são decerto apropriadas para despertar a convicção de que em nós há algo que a morte não pode destruir, isto só acontece por meio de uma ascensão a um ponto de vista a partir do qual o nascimento não é o começo de nossa existência. Daí se segue, todavia, que aquilo que é evidenciado como indestrutível pela morte não é propriamente o indivíduo, que, de resto, surgido pela procriação e trazendo em si as características do pai e da mãe, manifesta-se enquanto uma mera diferença da species e, como tal, só pode ser finito. Do mesmo modo, assim como o indivíduo não tem nenhuma recordação de sua existência antes do nascimento, assim também não poderá ter nenhuma recordação da sua atual existência após a morte. Ora, é na CONSCIÊNCIA que cada um põe o seu eu: este lhe aparece como ligado à individualidade, com a qual sucumbe tudo o que é próprio do indivíduo e que o diferencia dos outros. A persistência sem a individualidade lhe é, por isso, indiscernível da persistência dos outros seres, e ele vê o seu eu naufragar. Quem, no entanto, vincula a própria [586] existência à identidade da CONSCIÊNCIA e assim exige para ela uma persistência sem fim após a morte, deveria refletir que uma tal persistência só pode em todo caso ser alcançada à custa de um passado igualmente sem fim antes do nascimento. Mas como não tem nenhuma recordação de uma existência antes do nascimento, e assim sua consciência principia com o nascimento, tem de olhar o nascimento como o surgimento de sua existência [II 560] a partir do nada. Mas então ele compra o tempo infinito de sua existência após a morte, ao preço de um tempo igualmente infinito antes do nascimento: pelo que a conta fecha sem vantagem para ele. Se, ao contrário, a existência que a morte deixa intacta é diferente daquela da consciência individual; então aquela existência tem de ser independente tanto da morte quanto do nascimento e a esse respeito, por conseguinte, é igualmente verdadeiro dizer: “eu sempre existirei” e “eu sempre existi”; o que então dá duas infinitudes no lugar de uma. — Na palavra “eu”, entretanto, encontra-se propriamente o maior dos equívocos, como sem mais reconhecerá quem tiver presente o conteúdo do nosso segundo livro e a distinção ali feita entre as partes volitiva e cognoscente do nosso ser. Segundo a maneira que compreendo aquela palavra, posso dizer: “a morte é o meu inteiro fim”; ou também: “do mesmo modo que sou uma parte tão infinitamente pequena do mundo, assim também essa minha aparência pessoal é uma parte igualmente pequena do meu ser verdadeiro”. Mas o eu é o ponto obscuro na consciência, como na retina o ponto de entrada do nervo ótico é cego, como o próprio cérebro é totalmente insensível, o corpo solar é obscuro, e o olho tudo vê, menos a si mesmo. Nossa faculdade de conhecimento é completamente direcionada para o exterior, de acordo com o fato de que ela é o produto de uma função cerebral, surgida para o fim da mera autoconservação, logo, para a procura de alimento e captura de presa. Por isso cada um sabe de si apenas como esse indivíduo, como ele se apresenta à intuição exterior. Se ele pudesse no entanto tomar consciência do que é fora isso e para além disso, então deixaria voluntariamente escapar a sua individualidade, sorriria da tenacidade da sua lealdade para com esta e diria: “Que me importa a perda dessa individualidade se trago em mim a possibilidade de inumeráveis individualidades?”. Reconheceria que, mesmo que não lhe fosse assegurada uma perduração de sua individualidade, é como se a tivesse; porque ele [587] porta em si mesmo uma perfeita compensação para ela. — Além do mais, poder-se-ia ainda ter em mente que a individualidade da maior parte das pessoas é tão miserável e indigna, que elas em verdade nada perdem com ela, e o que nelas ainda pode ter algum valor é o [II 561] humano em geral: e a este pode-se assegurar a imortalidade. Sim, já a imutabilidade rígida e a limitação essencial de cada individualidade como tal teriam de produzir finalmente com sua persistência sem fim, pela sua monotonia, um fastio tão grande que, para ficar livre dela, melhor seria não ser nada. Desejar a imortalidade da individualidade significa propriamente querer perpetuar um erro ao infinito. Pois, no fundo, cada individualidade é apenas um erro especial, um passo em falso, algo que seria melhor não ser, sim, algo em relação a que a meta de toda vida é encontrar uma saída. Isso encontra a sua confirmação no fato de que quase todos, sim, propriamente falando todos os humanos, são feitos de tal modo que não poderíam ser felizes, não importando o mundo em que fossem colocados. Pois na medida em que nesse outro mundo a necessidade e a fadiga fossem evitados, cairiam presas do tédio, e na medida em que este fosse prevenido, seriam agarrados pela necessidade, pelo flagelo e sofrimento. Para um estado de felicidade do ser humano não seria de modo algum suficiente que se o transportasse para um “mundo melhor”, mas também ainda seria exigido que nele próprio se desse uma alteração fundamental, logo, que ele não mais fosse o que é, mas em vez disso se tornasse o que não é. Mas para isso ele primeiro tem de deixar de ser o que é: esta exigência é satisfeita provisoriamente pela morte, cuja necessidade moral já pode ser apreendida a partir desse ponto de vista. Ser transportado para um outro mundo e alterar todo o seu ser — é no fundo uma única e mesma coisa. Sobre isso baseia-se, por fim, também aquela dependência do objetivo em relação ao subjetivo, exposta pelo idealismo do nosso primeiro livro: por conseguinte, reside aqui o ponto de ligação da filosofia transcendental com a ética. Se se levar isso em consideração, encontrar-se-á que só é possível acordar do sonho da vida se com ele também se desfaz toda trama do seu tecido: este é no entanto o seu órgão mesmo, o intelecto com suas formas, com o qual o sonho seria tecido ao infinito; tão estreitamente ambos se relacionam. Quanto àquilo que propriamente sonhou o sonho, e que é diferente do sonho, eis o que unicamente permanece [588]. Ao contrário, quem se preocupa com o fato de tudo poder findar com a morte, deve ser comparado com quem num sonho [II 562] pensa que há apenas sonhos, sem um sonhador. — Ora, depois que uma consciência individual tivesse desaparecido através da morte, seria então desejável que ela fosse de novo ressuscitada para subsistir ao infinito? A maior parte do seu conteúdo nada é, quase sempre, senão uma torrente de pensamentos mesquinhos, terrenos, pobres, de preocupações sem fim: deixai-a enfim repousar! Com inteira razão, portanto, gravavam os antigos em sua pedra tumular: securitati perpetuae — ou bonae quieti. [1] Entretanto, se se quisesse aqui, como com frequência acontece, exigir a persistência da consciência individual para a ela vincular uma recompensa ou castigo no além; então com isso, no fundo, visar-se-ia apenas a compatibilidade da virtude com o egoísmo. Ambos, todavia, nunca se abraçarão: são fundamentalmente opostos. É, ao contrário, bem fundada a convicção imediata provocada pela visão das ações nobres de que o espírito do amor, que faz com que alguém poupe os seus inimigos, ou que um outro se interesse, com perigo para a própria vida, por alguém que nunca viu antes, jamais poderá dissipar-se e ser reduzido a nada. —


Ver online : O mundo como vontade e como representação. Segundo Tomo.


[1"Segurança eterna”, "Bom repouso”. (N. T.)