Este vocábulo, que significa restauração, restabelecimento, e cujo equivalente latino é restitutio, designa habitualmente a doutrina da restauração de todas as coisas no final dos tempos, é atribuído à Orígenes e Gregório de Nissa. O substantivo apokatastasis e o verbo apokathistemi são empregados por Orígenes com bastante moderação, em diversos sentidos, alguns dos quais podem ser considerados como simbolizando alegoricamente a apocatástase final, como o retorno dos israelitas à seu país depois do exílio. No primeiro livro do Comentário à João menciona-se "o que se chama a apocatástase" definida pela situação indicada por Paulo em 1 Cor 15, 25. Essa expressão: "o que se chama" mostra que Orígenes não é o inventor dessa apocatástase que ele já havia encontrado [em alguém que usou] antes que ele, em relação ao versículo paulino. No Tratado dos Princípios os dois empregos de apokatastasis nos textos da Filocalia não se referem à nossa apocatástase, mas na versão de Rufino se fala por três vezes de restitutio omnium ou de perfecta universae creaturae restitutio e às vezes no mesmo sentido do verbo restituere.
O texto principal em que se baseia a apocatástase origeneana é 1 Cor 15, 23 - 28, que se refere à ressurreição dos mortos: "Cada qual (ressuscitará) em sua própria categoria: Cristo como primícia, logo os que são de Cristo em sua Vinda, depois o fim, quando entregue o reino à Deus seu Pai , depois de ter destruído toda Dominação, Principado e Potestade. Porque ele deve reinar até que ponha todos os seus inimigos baixo seus pés. O último inimigo destruído será a morte. Porque (Deus) submeteu tudo sob seus pés. Quando se diz que tudo lhe foi submetido, está claro que se excetua aquele que lhe submeteu todas as coisas. Quando tudo lhe esteja submetido, então o Filho se submeterá àquele que lhe submeteu todas as coisas para que Deus seja tudo em todos."
Nada do que possuímos da obra de Orígenes permite atribuir-lhe a opinião que lhe designa Teófilo de que esta transmissão de poder do Filho ao Pai signifique a cessação do reinado do Filho, como afirma Teófilo do princípio ao fim de sua Carta Pascoal de 401. A submissão do Filho ao Pai é interpretada por Orígenes como o submetimento ao Pai de toda a criação racional, mais adiante submetida ao Filho; não quer dizer, como pretendem os hereges , que o Filho não esteja submetido ao Pai antes desta submissão final que coincide com o dom que faz o Pai da perfeição da bem-aventurança .
Acerca do uso que faz Orígenes destes versículos paulinos se apresentam diversas perguntas às quais devemos responder, não partindo de textos isolados, mas sim do conjunto da obra. 1) Orígenes apresenta esta restauração como incorpórea ? 2) Como panteísta ? É para ele absolutamente universal , supondo a volta ao estado de graça dos demônios e dos condenados, e ele atribui à esta universalidade, se é que existe universalidade, um valor de afirmação dogmática, ou simplesmente é o objeto de uma grande esperança ? 4) De onde provem a insistência de Orígenes neste texto paulino e na "restauração" de todas as coisas?
1) No concernente a uma apocatástase incorpórea, a pergunta pode parecer ociosa depois de tudo que dissemos sobre a ressurreição dos corpos. Certamente, um moderno diria talvez que esses corpos etéreos não lhe parecem nada consistentes e que de fato vem a ser uma afirmação da incorporeidade: se assim o fez, substituiria sua própria mentalidade à de Orígenes e não mereceria o título de historiador. A pergunta surge de quatro passagens do Tratado dos Princípios nas que Orígenes, lido na tradução de Rufino, discute entre duas hipóteses: a de um final corpóreo das criaturas racionais, baseando-se em razões escriturísticas, e a de um final incorpóreo, sustentado por razões filosóficas, mas não tira nenhuma conclusão, o que não é raro neste livro. Parece na verdade que Rufino cortou um pouco dessa segunda hipótese, a julgar pelo fato de que fragmentos conservados por Jerônimo não tem neles seus correspondentes. Mas dá conta, no entanto, de ambas hipóteses e do caráter de discussão de ditas passagens. Não se pode dizer o mesmo dos fragmentos traduzidos por Jerônimo: como sua finalidade era colecionar pérolas heréticas, neles suprime quase por completo o contexto da discussão e retém só os textos que falam da incorporeidade, dando a impressão de que Orígenes tenha mantido firmemente a incorporeidade final. Não é negada a ressurreição dos corpos, mas aparece como uma etapa provisória antes da incorporeidade total. Alguém pode se perguntar se Jerônimo não teria lido Orígenes através das opiniões de seu contemporâneo Evágrio Pôntico, já que a dissolução final do corpo glorioso se lê em vários lugares das Kephalaia Gnostica, os textos de Justiniano estão dominados sobretudo pelo origenismo do século VI.
Posto que subsiste oposição entre Rufino, por uma parte, e Jerônimo e Justiniano, por outra, posto que, segundo Rufino, Orígenes cada vez expõe ambas alternativas sem concluir com clareza em favor de uma ou de outra, a única resposta possível poderia se obter estudando as demais obras de Orígenes. Às vezes, é verdade, tem sido aduzido em favor da incorporeidade final um pequeno número de textos, lidos sem levar em conta suficientemente os sentidos diversos que Orígenes dá ao termo corpo: corporeidade terrena, corporeidade etérea, sentido moral da incorporeidade designando uma maneira de viver . Por isso, tais passagens não são significativas, e nas obras, salvo no Tratado dos Princípios, não se acha nenhuma afirmação clara do caráter passageiro , que seria dos corpos gloriosos, e neste livro vai ver somente nas interpretações de Jerônimo. Por outro lado, se lê várias vezes em suas demais obras, diretamente ou por via de consequência, que o estados dos corpos gloriosos é definitivo. Se for possível de se deduzir dos princípios invocados por Orígenes que o corpo glorioso esteja privado dos órgãos ligados ao devenir, então, toda mudança fica excluída. Orígenes chama atenção dos Saduceus que, pela sua maneira de conceber a ressurreição, restauram praticamente a sucessão do mundo atual. Então, se os bem-aventurados estão revestidos de corpos gloriosos que desaparecerão, de golpe ou pouco a pouco, para poder submergir-se na "hénada", quer dizer, na unidade divina, sempre estão no devenir e na mudança. No Diálogo com Heráclides Orígenes afirma com ênfase que o corpo ressuscitado está ao abrigo da morte:
"De modo algum é possível que o espiritual se torne cadáver nem tampouco se torne insensível: se é possível, com efeito, que o espiritual se torne cadáver, é de temer que depois da ressurreição, quando nosso corpo tenha ressuscitado, segundo diz o Apóstolo: Semeado corpo animal , ressuscita corpo espiritual , morreremos todos. Na verdade, Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morrem mais."
Ainda que não seja este inteiramente o problema questionado pelas divergências entre Rufino e Jerônimo e Justiniano, o fato de que todas as obras de Orígenes, salvo o Tratado dos Princípios, apresentam como definitivo o estado dos ressuscitados, tem no entanto sua importância. Portanto não se pode atribuir firmemente à Orígenes uma apocatástase incorpórea, ainda que tenha discutido esta hipótese no Tratado dos Princípios ao mesmo tempo que de uma apocatástase corpórea.
2) É panteísta a apocatástase origeneana? Supõe ela que a união final das criaturas espirituais com Deus e entre elas ocorrerá pela dissolução de suas "hipóstase", quer dizer, de suas substâncias ou personalidades ? Poderíamos invocar de novo a esse respeito os textos que acabamos de citar acerca de que os ressuscitados já não conhecerão a morte. Orígenes expressa frequentemente a união do fiel com Deus por 1 Cor 6, 17: "Aquele que se une ao Senhor é um só espírito com ele", réplica de Gen 2, 24, citada anteriormente no mesmo versículo: "Serão dois em uma só carne ". Entre o fiel e o Senhor, como entre o marido e a esposa , tem às vezes união e dualidade. De modo semelhante define Orígenes o conhecimento, tanto o de Deus quanto o das realidades divinas — único que lhe interessa — , mediante Gen 4, 1: "Adão conheceu Eva sua esposa", designando conhecimento pela união de amor. Podemos evocar também a famosa imagem empregada por ele para expressar a união da alma pré-existente de Jesus com o Verbo, a do ferro que, submergido no fogo , se torna fogo, o ferro se torna fogo no sentido de que aquele que o toca se queima, mas, entretanto, segue sendo ferro, de modo que a imagem expressa por sua vez a dualidade e a unidade. Não há aqui sombra de panteísmo.
No tocante à união com Deus e com Cristo, que será a da vida bem-aventurada, citemos dois textos entre outros. O primeiro é o do Comentário a João:
"Então, todos os que tenham chegado à Deus mediante o Verbo que está junto à ele terão uma única atividade , compreender a Deus, a fim de tornarem-se assim formados no conhecimento do Pai, todos em conjunto exatamente um Filho como agora só o Filho conhece o Pai."
Em outros termos, todos os bem-aventurados, tornados em certo modo interiores ao Filho único, conheceriam ao Pai como o conhece agora só o Filho. Um texto equivalente, mas que fala não de um único Filho, mas sim de um único Sol a partir de Mt 13, 43, se encontra no Comentário sobre Mateus. Depois da ressurreição, os bem-aventurados brilharão "até que todos cheguem ao estado de homem perfeito e se tornem um único sol. Então brilharão como o sol no reino de seu Pai." Posto que para Orígenes, Sol de Justiça é uma das denominações (epinioai) luminosas aplicadas ao Filho, tornar-se um único sol é também tornar-se um único Filho no Filho único. Mas, faz Orígenes de dita unidade de todos os homens entre si no Filho único uma representação panteísta? Isto estaria em oposição com a crítica que o mesmo Orígenes faz do panteísmo estoico em Contra Celso . Para os filósofos do Pórtico a história do mundo se compunha de uma sucessão de ciclos com duas fases. Na primeira a diakosmesis, quer dizer, a organização do mundo, este vai saindo de um fogo divino, em Deus representado em forma material ; na segunda, a ekpyrosis, a conflagração, o incêndio, o mundo é pouco a pouco reabsorvido no fogo divino. Orígenes julga assim esta segunda fase:
"Livre é o pórtico de entregá-lo tudo às chamas! Nós sabemos muito bem que nenhuma realidade incorpórea está destinada às chamas e que não podem dissolver -se no fogo nem a alma do homem, nem a substância (hipostasis) dos anjos , tronos, dominações, principados, potestades."
Frente ao panteísmo materialista dos estoicos , que reabsorve todas as criaturas em Deus e, em consequência, não crê na imortalidade da alma, mas sim somente em uma "sobrevivência" — Orígenes a designa pelos termos de diamone ou epidiamone — que dura só até a conflagração seguinte, Orígenes afirma com clareza que a união com Deus não poderia suprimir as pessoas humanas nem as angélicas. Mais adiante, no mesmo livro, opõe novamente a conflagração estoica e a bem-aventurança cristã, mostrando que esta última é, certamente, a obra do Logos divino, mas que ela tem que ser necessariamente recebida e aceita pela liberdade humana:
"Os do Pórtico dizem que, uma vez que o elemento que eles pensam ser o mais forte (= o fogo que é Deus) tenha triunfado sobre os demais, se produzirá a conflagração na qual tudo se converterá em fogo. Nós afirmamos que um dia o Logos dominará toda a natureza racional e transformará cada alma em sua própria perfeição no momento em que cada individuo, usando simplesmente sua liberdade, eleger á o que quer dizer o Logos e obterá o estado que tenha escolhido."
A liberdade do homem é um elemento essencial do caminho que conduz à apocatástase e veremos que também isto há de ser tomado em consideração . Em todo caso, estes dois textos que opõem a restauração final segundo o cristianismo à conflagração estoica excluem da primeira todo panteísmo.
3) Orígenes professou uma apocatástase universal, incluindo o retorno à graça dos demônios e dos condenados? Se forem tomados em consideração todos os textos, ou ainda que somente os do Tratado dos Princípios, resulta uma grande confusão. Temos assinalados já as vacilações de Orígenes e suas tomadas de posição em pró e em contra no referente à eternidade do Gehena e a ambiguidade do termo aiônios, como expressão tanto de eternidade quanto de uma longa duração.
Vamos a tratar separadamente o caso do Diabo e o dos demônios e o caso dos condenados. A afirmação mais clara da Salvação do Diabo, se bem que não seja absolutamente explícita, se acha no Tratado dos Princípios: o último inimigo destruído, a Morte, não ser á destruído no sentido de que sua substância seja aniquilada, mas sim em que sua vontade inimiga de Deus se convertirá. Não se diz com clareza que a Morte represente aqui o Diabo, mas na obra de Orígenes frequentemente o último inimigo que será destruído, a Morte, é identificado com o pecado e com o Diabo. Por outro lado, posto que a Morte é o pecado, ela é algo negativo, ou melhor, privativo, que carece de substância, essa "nada" que segundo Jo 1, 3, como o lê Orígenes, foi criada sem o Verbo. Portanto, pode-se falar da "substância" da Morte só se esta designar um ser determinado, que não possa ser outro senão o Diabo, frequentemente chamado assim por Orígenes. Mas, em oposição à este texto temos o protesto, que não pode ser mais explícito, da Carta aos amigos de Alexandria que temos estudado ao tratar da vida de Orígenes. Ainda que conservada unicamente em latim, este protesto é de uma autenticidade absolutamente certa, pois é citada em termos equivalentes por Rufino e por Jerônimo no mais álgido de sua disputa . Orígenes se queixa de que se lhe tenha atribuído a opinião de que o Diabo se salvaria: isto nem sequer um louco poderia dizê-lo. E não é questão aqui de uma retratação insincera motivada pelo medo das excomunhões episcopais, pois, por um lado, isto não se alinha com o caráter do "homem de aço", e por outro lado, esta segunda posição já está esboçada no Tratado dos Princípios e, a par da outra, no resto de sua obra. Orígenes se queixa de que se tenha endurecido como afirmação categórica uma passagem que há de ser considerada um marco de uma teologia de uma busca como é a deste livro.
Em outra passagem deste escrito pergunta-se, com efeito, se os demônios poderão algum dia se converter na bondade, por causa de seu livre arbítrio, ou se a malícia inveterada e permanente não teria se tornado natureza. Aceita, pois, a possibilidade de que se os demônios não são maus por sua natureza original, ou seja não foram criados maus por Deus, mas sim que se tornaram maus por opção de seu livre arbítrio, o hábito da maldade pôde bloquear o livre arbítrio, tornar uma segunda natureza e tornar impossível toda a conversão em direção ao bem. Esta segunda alternativa não se encontra isolada na obra de Orígenes. Que a maldade tenha se tornado natureza no demônio e em seu filho, o Anticristo, se lê no Comentário de João, a propósito da profecia de Ezequiel acerca da queda a formar o neologismo pephysiomenon, esse personagem foi "naturalizado" assim. E o contrário também é verdade, com a diferença de que se o hábito do mal bloqueia o livre arbítrio, o do bem dá a verdadeira liberdade que, para Orígenes, não se reduz ao livre arbítrio. Com efeito, em oposição à hipótese que se propõe no Tratado dos Princípios da possibilidade de uma queda dos bem-aventurados por causa de seu livre arbítrio, o Alexandrino mostra com alguma frequência que a caridade se torna natureza, contribuindo assim com uma imutabilidade no bem. Por causa da caridade perfeita que a une ao Verbo, isto se realiza à perfeição na alma humana de Jesus, que possui o bem de maneira substancial, como a Trindade , e é absolutamente impecável, ainda que seja da mesma natureza que as demais almas, dotadas como elas de livre arbítrio, se bem que estas outras almas possui o bem só acidentalmente com a possibilidade de progresso ou queda. O livre arbítrio não pode separar da caridade aqueles que se entregaram à ela, e o que se aproxima de Deus participa de sua imutabilidade. Se a alma é absolutamente imortal a respeito da morte comum, não o é a respeito da morte do pecado, mas a torna na medida em que se "afirma na bem-aventurança". Às vezes Orígenes chega a falar disso como de um conceito limite e progressivo da impecabilidade do espiritual. Porque, além do livre arbítrio, conhece, como testemunham vários textos, um conceito de liberdade que, como eleutheria paulina, se identifica com a adesão ao bem. Poder-se-iam invocar outros textos ainda acerca do caráter definitivo da condenação do demônio.
Algumas das passagens estudadas com frequência em relação ao "fogo eterno" mostrariam a Orígenes mais inclinado a aceitar a eternidade dos castigos para os demônios que para os homens. Existem textos que vão neste sentido como a Homilia sobre Jeremias XVIII, 1 acerca da descida do profeta a oficina do oleiro, ou alguns dos que comentam o pecado contra o Espírito. Mas, em outros lugares em que intervêm este último tema, a consideração da misericórdia divina o leva a deixar aberta a questão. Ademais, a exegese do dichotomesi de Mt 24, 51 e Lc 12, 46 — trata-se do mau servo a quem o patrão, ao regressar, surpreende-o a castigar a seus subordinados e a beber com bêbados — não diz uma palavra em favor de uma possibilidade de conversão para os condenados. A interpretação mais corrente é a seguinte "o espírito que está no homem", dom divino mentor da alma, retorna à Deus que o havia dado, enquanto que a alma e o corpo "vão com os infiéis" para o Gehena. Posto que o espírito está associado à alma como seu treinador na santificação, seu preceptor na virtude, no conhecimento de Deus e na oração, não se vê como aqui na terra o pneuma nunca é tirado do pecador, mas sim adormecido pelo pecado, e o homem conserva a possibilidade de voltar à Deus.
Por consequência, erraria quem visse nos textos que expressam a não eternidade do Gehena a expressão de uma firme convicção. Orígenes vacila, pois não vê como conciliar todos os ensinamentos da Escritura: às vezes não se pronuncia, outras vezes arrisca uma opinião ora em uma, ora em outra direção. De todos modos , se as afirmações da universalidade da apocatástase que se crê encontrar em sua obra tiveram que ser entendidas nesse sentido e tomadas como proposições de natureza dogmática, estariam em contradição com o ponto capital da síntese apresentada pelo Tratado dos Princípios , o livre arbítrio. Com efeito, Deus e o Verbo jamais forçam o homem, não o manipulam, não lhe fazem crer mentirosamente que é livre, quando de fato seria manipulado. Livremente, o homem se submete ao verbo e se submeterá ao Pai na apocatastasei. Temos visto afirmado com clareza em Contra Celso em oposição à conflagração estoica. Se o livre arbítrio do homem, aceitando ou recusando as iniciativas divinas, desempenha um papel tão importante em Orígenes, acaso poderia ele chegar a ter a certeza de que todas as liberdades humanas e demoníacas se deixarão comover finalmente e se aderirão à Deus na apocatástase ? Se algo acrescentou Orígenes ao dito de Paulo, 1 Cor 15, 23-28 só pode ser uma grande esperança. Uma certeza acerca de uma apocatástase universal estaria em contradição com a autenticidade do livre arbítrio com que Deus dotou o homem.
Na base desta esperança se acha certamente a fé imperturbável de Orígenes na bondade de Deus, não somente do Pai de Jesus Cristo, mas sim do Deus criador do Antigo Testamento , que para ele, como para todos os "eclesiásticos", quer dizer os membros da Grande Igreja , é um e o mesmo, pese ao que pretendem os Marcionitas e os Gnósticos. Por todos os meios, inclusive por sua exegese alegórica, o defende das reprovações de crueldade que lhe dirigem esses hereges, e até chega à aceitar a hipótese da pré-existência das almas para tirar-lhe a responsabilidade das condições de desigualdade em que nascem os homens. Por esta razão geralmente concebe os castigos divinos como medicinais e misericordiosos, para emenda e conversão daquele que é castigado. No entanto, ter entrevisto que o Gehena possa ter para os demônios — e também para os condenados, ainda que vacile mais perto disto — um caráter definitivo que não é imputável ao Deus bom, mas sim ao endurecimento da criatura que não quer, e finalmente não pode, deixar-se conviver pela bondade de Deus: a ideia de que a maldade possa, de certo modo, tornar-se natureza por causa do hábito não está ausente de sua obra. Mas não a explorou bastante bloqueado pela polêmica anti-marcionita e agnóstica. Parece conservar a esperança de que a Palavra de Deus chegará a ter tal força de persuasão que, sem violar o livre arbítrio, chegue a vencer todas as resistências.
Vemos, pois, que resposta extremamente matizada teria que dar para a universalidade da apocatástase segundo Orígenes. Não se pode dizer que a tenha mantido ou professado firmemente, porque se tem textos que vão nesse sentido, muitos outros se lhes opõem manifestando outros aspectos que devem intervir na resposta. Ao máximo se pode dizer que a esperou, numa época em que a regra de fé não estava ainda tão fixa como a estará mais tarde.
Certamente, os que buscam em Orígenes um "sistema", com risco de prescindir das três quartas partes do que fica de seu pensamento e ainda no Tratado dos Princípios , para sistematizar as poucas afirmações que retém, não ficarão satisfeitos com nossa exposição sobre os últimos dias segundo o Alexandrino, pois ela destaca as numerosas matizes, vacilações, posições discordantes, sobretudo no referente à ressurreição e à apocatástase. Partirão do princípio de que esta última deva ser tão universal quanto a queda na pré-existência, de que se havia livrado unicamente a alma unida ao Verbo. Mas de fato, segundo várias passagens do Tratado dos Princípios , elas não levam em conta, tem outras almas, além da de Cristo, que não participaram da queda. então, para ser razoável como eles, porque seria absolutamente universal a apocatástase se a queda não o é ?
Entre os partidários de um "sistema" de Orígenes e nós a oposição depende do conceito de ciência histórica. Estudar uma doutrina é acaso projetar sobre ela uma espécie de marco geométrico em grandes traços que acentuem algumas características deixando outras à sombra, como lamentavelmente obriga a fazê-lo às vezes o ensino escolar ? Ou então, é tentar, em quanto o permitem as possibilidades humanas, jamais perfeitamente adequadas à tarefa, mostrar o melhor possível os diferentes pontos desta doutrina segundo o valor que lhes dá seu autor, sem descuidar dos matizes, dos titubeios, das antíteses, das tensões, e até — porque não — das contradições, se as tem ? Um pensamento humano vivo é mais interessante que um sistema. E quando se trata de Deus e das realidades divinas,incognoscíveis pela natureza, todo sistema se revela gravemente deficiente, e com frequência herético, porque não capta a antítese que expressa o real, é o resultado de certa estreiteza do espírito.
Um homem tão apaixonado por Deus e pelo conhecimento do divino como o é Orígenes não chega a Deus mediante um sistema, mas sim por todos os meios, intelectuais ou místicos, que estão à sua disposição, ainda que no caso de que estes meios não constituam um sistema regido por uma lógica racionalista e na obscuridade da fé, que é a nossa, não se envergonha de andar às apalpadelas. Mas, estes tateios são muito mais comovedores e interessantes que os sistemas melhor construídos.