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Orígenes, um teólogo controvertido

Crouzel (Orígenes Teólogo:293-306) – O pecado original na pré-existência

quinta-feira 10 de novembro de 2022, por Cardoso de Castro

      

ORÍGENES, Un teólogo controvertido, Henri CROUZEL  . Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1998, 379 p. ISBN: 84-7914-363-0, traducción española de la edición original en francês: Origène por las Monjas Benedictinas de la Abadía Santa Escolástica de Victoria, Buenos Aires (Argentina). Tradução de Antonio Carneiro das páginas 293 até 306

      

A pré-existência das almas compreende-se unicamente pelo pecado   original que nela se situa, pois somente completada por este último pode se opor aos ataques marcionitas contra Deus   criador, mostrando na diversidade das situações em que se acham as criaturas racionais um resultado das decisões de seu livre arbítrio. Notemos também que a doutrina   origeniana do pecado original não se reduz ao que vamos dizer e contém afirmações que em sua época eram tradicionais e seguirão sendo todavia por muito tempo: a impureza da criança em seu nascimento fundamenta para ele a necessidade   do batismo   e justifica especialmente o batismo das crianças; tal impureza está ligada ao ato carnal que lhe deu origem, etc. É esta uma explicação entre outras do pecado original relacionado com a pré-existência.

Recordemos que as criaturas racionais estavam absortas na contemplação de Deus como estarão os bem-aventurados na restauração final. Formavam uma unidade  , uma Igreja  , cuja cabeça e Esposo   era Cristo   em sua humanidade pré-existente. A queda   vem a deslocar essa Igreja e por fim a tal unidade. Sua origem está expressada de duas maneiras  , ambas em estreita relação com a prática da vida espiritual. Primeiro, a sacietas, a saciedade da contemplação divina. Este termo latino traduz o grego kóros: não significa que a infinitude divina possa de alguma maneira saciar a uma criatura, mas sim, como o demonstrou em uma análise do vocábulo Marg. Harl, kóros e sacietas expressam o fastio da contemplação, algo comparável com a "acedia", que para os monges orientais é uma das grandes tentações do monge, um fastio do espiritual e finalmente de todas as coisas. Uma segunda explicação parte de uma etimologia clássica entre os gregos, ainda que muito provavelmente artificial, que relaciona psyche   — alma — com psychos — frio   — . Deus é fogo   e calor. Ao distanciar-se de Deus as inteligências se esfriaram, tornaram-se almas. Há pois uma diminuição de fervor e de caridade. Mas, esta degradação da inteligência implica graus na alma porque nem todas caíram ao mesmo nível. Daí provem a diversidade das criaturas racionais, suas diferentes ordens, anjos  , humanos e demônios, e dentro de cada órdem sua contínua diversidade. Assim, a queda original não é uma causa   imediata, mas sim motivo da diversidade do mundo sensível   criado por Deus com posterioridade à ela.

De todos os modos, a queda se deve a uma decisão do livre arbítrio da criatura racional, o qual é uma de suas características essenciais e que, segundo a doutrina constante de Orígenes  , Deus respeita e não força jamais, ainda que a solicite insistentemente. Na exposição da regra de fé do prefácio do Tratado dos Princípios lemos:

"O ponto seguinte também está definido pela predicação eclesiástica: toda alma racional   está dotada de livre arbítrio e de vontade...Há que compreender, portanto, que não estamos submetidos à necessidade e que não somos forçados de todas maneiras nem a nosso pesar a obrar   o mal ou o bem. Dotados como estamos do livre arbítrio, algumas potências podem nos empurrar para o mal e outras ajudar-nos a obrar nossa salvação; entretanto não estamos constrangidos pela necessidade para obrar o bem ou o mal. Pensam o contrário os que dizem que o curso e os movimentos das estrelas são a causa dos atos humanos, não só daqueles que não dependem do livre arbítrio como também dos que estão em nosso poder."

Frente ao determinismo pagão da astrologia   e das filosofias inspiradas nela, frente também ao determinismo gnóstico dos "hereges   das naturezas". Orígenes permanecerá através de todo seu pensamento   um intrépido paladino do livre-arbítrio do humano, que é uma das ideias-centrais de sua teologia e, em diálogo   com a ação divina, um dos motores de sua cosmologia. Foi-lhe consagrado um dos grandes capítulos do Tratado dos Princípios que foi conservado em grego na Filocalia   (não confundir com a Philokalia): depois de uma reflexão de ordem   filosófica, esforçou-se por separar as objeções que se lhe poderiam fazer a partir de textos escriturísticos: este capítulo teve uma influência considerável e o Do livre arbítrio de Erasmo se inspira amplamente nele.

A queda foi universal   e alcançou todas as inteligências? Uma alma se livrou certamente, a que estava unida ao Verbo, pois Orígenes diz que ela é impecável, transformada no Verbo, como o ferro submergido no fogo se torna fogo. Mas, não existem outras que tenham escapado da queda? a maioria dos autores o negam, partindo de um a priori  : a queda deve ter sido tão universal quanto a apokatastasis   final. No último capítulo deste volume   veremos se é exato dizer que Orígenes professa com clareza   uma apokatastasis universal. Em quanto à universalidade da queda, isso parece estar bem desmentido por alguns textos do Tratado dos Princípios que, como o demonstrou M. Simonetti, supõem-se que algumas inteligências escaparam da queda. Pensa Orígenes que entre as criaturas angélicas que não pecaram, algumas se encarnaram, como Cristo, não à consequência de um pecado, mas sim para servir aos homens e ajudar na missão do Redentor. O Comentário sobre João formula uma hipótese deste gênero   a propósito de João Batista e fiando-se de um apócrifo, A oração de José, e também de alguns patriarcas do Antigo Testamento  . O Comentário aos Efésios de Jerônimo, amplamente inspirado no de Orígenes, reproduz a propósito de Ef. 1, 4 a mesma opinião   a respeito dos profetas e dos santos do Antigo Testamento enviados à terra   em corpos terrestres sem haver pecado, para ajudar à Redenção.

Neste caso estão todos os anjos para Orígenes ou somente seus superiores, havendo pecado os demais ainda que menos profundamente que os homens e os demônios ? É difícil dizê-lo. O Tratado dos Princípios afirma que os anjos obtiveram por méritos próprios suas funções, mais altas ou mais baixas, entre os que mandam ou entre os que obedecem: o contrário teria correspondido à uma parcialidade indigna do Criador ? Pode resultar estranho esta insistência de Orígenes sobre o mérito, que provém da polêmica anti-valentina. De todos modos, isto supõe que entre os anjos exista diversidade de méritos. Deve-se à um progresso a partir do estado   comum, que alguns textos não excluem, ou pelo contrário à diversos graus da queda ? Uma homilia   sobre Números, apoiando-se em 1 Cor 6, 3 : "Não sabeis que julgaremos os anjos ?", mostra os anjos da guarda julgados juntos com seus pupilos humanos no Juízo final, o qual supõe que possam pecar. Talvez até as funções de anjo da guarda, já dos indivíduos, já das nações ou das Igrejas, e até dos diversos reinos da natureza, representem para eles uma espécie de castigo   misericordioso   por causa da queda primitiva.

Com os anjos tem que se mencionar os astros. Pois, o Tratado dos Princípios apresenta, seguindo a tradição filosófica, mas sempre a modo de hipótese, os astros como seres animados e racionais, cujas almas preexistiram e foram submetidas à vaidade   dos corpos visíveis para serviço dos homens. Eles também seriam suscetíveis de pecar. Sua entrada no corpo é consequência de uma falta, como parecem pensar muitos intérpretes de Orígenes, antigos ou modernos, ou ocorreu só para o serviço do homem, sem desmérito de sua parte ? O texto de Rufino parece mais estar bem a favor da segunda solução.

2) Em oposição com os anjos estão os demônios, cujos nomes são paralelos aos das ordens angélicas, Tronos, Dominações, Principados, Potestades, etc. Também eles podem ser anjos da guarda, mas ao revés, esforçando-se por fazer pecar ao que tomou a seu cargo, indivíduo   ou nação. À sua cabeça está seu chefe, Satan  ás, o Diabo  , o Maligno, em quem Orígenes vê o "Princípio" da queda, seguindo à Jó segundo os setenta, Jó 40, 14 (19): "É o começo do "modelado" do Senhor, feito para ser irisação de seus anjos". Este vocábulo plasma, "modelado’, designa a criação do mundo sensível que seguirá à queda, como iremos ver. Ou em outros termos: "ele é o primeiro terrestre porque, havendo sido o primeiro a cair das realidades superiores, e havendo preferido outra vida à vida melhor, tem sido digno de ser o princípio nem da produção (ktisma) nem da criação (poiema  ), mas sim do "modelado" (plasma) do Senhor, feito para ser irisação dos anjos". Isto não quer dizer que Satanás e seus demônios tenham, como os homens, corpos terrestres: seus corpos são"por natureza algo sutil  , como um ligeiro sopro", como é etéreo   o corpo dos anjos. A queda de Satanás, arrastando a todos os demais, está figurada pela profecia   de Ezequiel sobre o príncipe de Tiro e a de Isaías sobre o rei da Babilônia. Orígenes inaugura assim uma tradição: a afirmação da grandeza   de Satanás antes da queda quando levava "o selo da semelhança  ", quer a participação na imagem de Deus; o orgulho que provocou a catástrofe; o apelativo de Lúcifer, Eôsphoros (porta  -aurora  ), designando a estrela da manhã aplicado também à Cristo. Esta origem angélica de Satanás, também o afirma a regra de fé segundo se lê no prefácio do Tratado dos Princípios:

"A predicação eclesiástica tem ensinado a existência do Diabo e de seus anjos, e também das potências adversas, mas, não tem exposto com clareza suficiente sua natureza e modo de ser. Muitos são de opinião que o Diabo foi um anjo e que, tornado apóstata, convenceu numerosos anjos para que o seguisse em seu distanciamento: por isso estes últimos são chamados de, até agora, seus anjos."

E a regra de fé, ao mencionar o livre arbítrio com o que está dotada a alma racional, afirma desta:

"Está em luta   com o Diabo e seus anjos assim como as potências adversas, que se esforçam então para carregá-las de pecados."

O capítulo do Tratado dos Princípios sobre o livre arbítrio está seguido por uma longa exposição sobre os combates dos poderes diabólicos contra os homens.

Os demônios eram, pois, originalmente como os anjos, logika, seres racionais, com o sentido sobrenatural que este vocábulo tem habitualmente em Orígenes: ou seja que participam do Logos   divino, Palavra e Razão de Deus. Mas, por uma livre opção de sua vontade tem recusado essa participação no Logos e tem tornado aloga, seres sem razão, assemelhando-se assim, de certo modo, aos animais  , convertendo-se em animais espirituais, se é que se pode chamar assim. Por este motivo as imagens adversas que, por causa do pecado, mascararam a participação do homem na imagem de Deus, são chamadas indiferentemente diabólicas ou bestiais. Por causa de sua malícia   os demônios não podem compreender as realidades espirituais e ignoram tudo concernente à salvação. Orígenes dá as vezes uma significação sobrenatural à existência, participação de Deus, quem se revelou à Moisés como "o que é". Havendo renegado desta participação na fonte de sua existência, os demônios tornaram-se em certo sentido ouk ontes, "não-entes".

Uma possibilidade de conversão dos demônios não aparece em Orígenes com tanta clareza como se diz habitualmente: voltaremos à isso no último capítulo quando trataremos da restauração ou apokatastasis. No Tratado dos Princípios, Orígenes coloca a questão sem resolvê-la, deixando duas possibilidades: ou a conversão é possível porque permanece neles o livre arbítrio, ou "pelo contrário a malícia duradoura e inveterada se converteria pela força do costume de certo modo em natureza ?" A razão deste segundo termo da alternativa é que o livre arbítrio está cada vez mais escravizado pelos maus costumes que tende a tornar natureza. Esta é realmente uma opinião de Orígenes e não de seu tradutor Rufino porque se encontra várias vezes em suas obras conservadas em grego.

3) "A terceira ordem da criação racional está formada por esses espíritos que foram julgados por Deus aptos para completar o gênero humano, quer dizer as almas dos homens."

Porque estiveram implicados menos gravemente que os demônios na queda primitiva e tem para eles esperança de cura  , tem sido insertados neste mundo sensível e terreno como em um instituto de correção.

4) Este mundo sensível e terreno tem sido, pois objeto de uma espécie de segunda criação que contem os seres inanimados, os vegetais e os animais. O começo do livro II do Tratado dos Princípios se ocupa do "mundo" e de seus diferentes lugares, terra, mar, ar, céu, etc. Não se trata de expor aqui o conteúdo desses textos muito complexos com caráter de discussão e de adaptação de astronomia antiga. Orígenes está impressionado pela variedade deste mundo sensível, assim criado para que se adapte às necessidades dos seres racionais que a queda primitiva tornou-os muito diferentes uns de outros por haver caído para mais ou para menos baixo. Mas, para este mundo tão diverso, o Criador deu entretanto uma unidade. O corpo humano, etéreo na pré-existência, tornou-se terrestre, análogo à este mundo sensível em que o homem deve viver  : não voltemos sobre este ponto que já o tratamos. Subjacente à esta concepção do mundo se acha uma ideia de matéria proveniente da filosofia grega. A matéria do que o mundo está composto é uma espécie de substrato amorfo capaz de receber   qualidades diversas, e de mudá-las, pois não se compromete definitivamente com nenhuma: não obstante não pode subsistir sem estar informado por qualidades. Mas, à diferença   dos filósofos, Orígenes se nega à admitir que dita matéria seja incriada, pois tudo foi feito por Deus a partir do nada. Esta concepção da matéria com a qualidade   que a informa explica não somente as mudanças que se produzem na natureza, como também a identidade   e a alteridade   que existem entre o corpo etéreo da pré-existência e o corpo terrestre, e até mesmo, como veremos mais adiante, entre o corpo terrestre e o corpo ressuscitado.

Tem pois um vínculo entre o pecado e a corporeidade terrestre. De que natureza é tal vínculo ? É indiscutível que há uma influência platônica, mas, em que proporção atua ? Haveria que ver de algum modo na mentalidade de Orígenes uma conexão necessária que, de certa maneira, até mesmo se imporia à Deus, gerando um dualismo   ? Tudo isso parece exagerado. Primeiramente, os que pecaram mais profundamente, os demônios, não são colocados em corpos terrestres, nem sujeitos como os homens ao mundo sensível: se o Diabo é chamado de o Primeiro Terrestre, é porque está na origem da queda que foi a causa da criação do mundo sensível, mas não porque tenha um corpo terrestre. Não existe, pois, uma conexão necessária entre pecado e materialidade terrestre. Se o homem foi colocado em tal situação, é porque, segundo os desígnios de Deus, é todavia capaz da cura e porque o fato de ter sido posto no mundo sensível, em que se insere mediante a qualidade terrestre de que seu corpo foi revestido, é uma prova , um castigo misericordioso, prelúdio da Redenção. Para compreender como, segundo Orígenes, a vida inserida no sensível constitui uma prova de nosso amor por Deus, é necessário referir-se ao conceito de pecado que temos exposto várias vezes neste livro sobretudo à propósito da virgindade   e do matrimônio. Bom em si-mesmo, já que foi criado por Deus, é a imagem dos mistérios divinos, o sensível põe o homem em um estado de tentação, pois este último sempre está tentando deter-se nele como no absoluto que busca, absoluto falso e decepcionante, pois é tão somente uma imagem do absoluto verdadeiro. Tal é — o vimos várias vezes — o essencial do pecado segundo Orígenes, um ato de idolatria que coloca o sensível no lugar de Deus, e um adultério, conforme o tema do matrimônio místico. Se o homem com ajuda   da graça divina que chega por meio de Cristo Redentor, supera esta tentação, oferece a Deus em união   com Cristo, um amor que o salva.

Não se trata, pois, de uma conexão necessária entre a queda original e o mundo sensível, mas sim de uma decisão livre de Deus, a única compatível com a liberdade divina, a quem toda necessidade, ainda a mais tênue que se possa imaginar, tiraria de fato sua divindade. Se tomarmos o termo dualismo no seu sentido filosófico habitual, ele designa uma doutrina que faz derivar tudo de dois princípios irredutíveis entre si. É claro que tal termo não se pode aplicar à síntese origeneana por causa da ideia fortíssima que tem seu autor do absoluto divino e da criação a partir do nada. Pode-se ver dualismo no pensamento de Platão   ? Isto parece discutível, pois deixa algumas incertezas, segundo ilustram as opiniões diversas dos historiadores da filosofia. Suposto que se possa tratar de dualista Platão, haveria que dizer então que Orígenes assumiu em parte uma estrutura   de origem dualista, mas que seu conceito de Deus exclui todo dualismo. Tão pouco pode-se dizer que a doutrina origeneana seja monista, reduzindo tudo absolutamente à um único princípio, pois ela está profundamente marcada por este paradoxo fundamental do cristianismo, de um Deus todo-poderoso que cria livremente uma criatura dotada de livre arbítrio, quer dizer, chamada à aceitar sua vontade, ainda que também podendo se opor à ele. O jogo   da ação divina e da liberdade humana é um dos traços fundamentais da síntese origeneana exposta no Tratado de Princípios e subjacente em toda obra do Alexandrino.

Esta permanece em tensão entre o dualismo e o monismo.

Também se diz, com bastante frequência, que para Orígenes a queda é algo inevitável, que tinha de se produzir: tal afirmação nos parece infundada. Antes de tudo, é legítimo passar assim do plano do fato sobre o qual se situa Orígenes — afirmativamente quando se trata do que lhe entrega a "predicação apostólica", e hipoteticamente no que concerne a suas próprias especulações — no plano do direito ? Tal conclusão é inaceitável, posto que, ainda excluindo a alma de Cristo, alguns dentre os seres racionais não caíram. Mas, sobretudo, a inevitabilidade da queda está em oposição ao livre arbítrio das criaturas, que nesse caso não seriam livres, mas sim na realidade manipuladas, e com o respeito, tão frequentemente afirmado, que Deus tem por elas. Se trata-se de uma necessidade proveniente de Deus, então se dá a Deus uma ideia indigna dele, porque se pretende que ele finge respeitar a liberdade humana, enquanto que na realidade não o faz e se lhe atribui ao Deus bom — uma das afirmações constante de Orígenes contra os marcionitas — a responsabilidade do mal. Se pretende-se que tal necessidade não provem de Deus, se lhe tira a divindade  , sobrepondo-lhe, assim como às criaturas, um Destino que os determina. Nada mais contrário ao pensamento profundo do nosso teólogo.

Para terminar esta exposição sobre a queda, motivo da criação do mundo sensível por Deus, seria tentador esboçar um paralelo entre a concepção de Orígenes e a de seus principais adversários, os valentinianos. Segundo eles, os dois planos inferiores do mundo, o Intermediário, reinado por Deus criador, o Demiurgo  , e das almas, e o Kenoma, lugar do vazio  , domínio do Cosmocrator, o Diabo e dos corpos, são a consequência de um drama   que se produziu no Pleroma  , o Paraíso dos Eones. Este drama, ao que poder-se-ia aplicar irreverentemente o título de um conto para crianças da Condessa de Ségur, "Os desastres de Sophia  ", é o seguinte: Sophia, a sabedoria, o último Eon, foi presa de um desejo irrefreável de ver o Pai  , o Deus supremo, o qual pôs em perigo todo o Pleroma, pois ameaçava em transtornar sua hierarquia. Esta hybris   inconcebível se separou finalmente de Sophia a maneira de um Eon abortado, engendrado por ela, Sophia Achamot o qual para restabelecer a ordem é expulso do Pleroma. Tal é a versão valentiniana da queda. De Achamoth vão sair o Intermediário com seu Demiurgo e o Kenoma com seu Cosmocrator, assim como as criaturas angélicas e humanas que o povoam. Achamoth intervem diretamente na criação dos pneumáticos, insuflando, às costas do Demiurgo, em algumas criaturas feitas por ele, germens provenientes do Pleroma a que ela pertence por sua origem. Na escatologia, quando finalmente Achamoth sua mãe será recebida no Pleroma e unida ao Salvador  , que é o Eon masculino   que foi engendrado para "formá-la" e salvá-la, os pneumáticos também serão acolhidos ali e unidos,como elementos femininos, aos anjos do Salvador.

A versão origeneana da queda, por mítica que seja, tem muito pouco em comum com essa mitologia. Antes de tudo, a queda é para ele obra de criaturas racionais e não o resultado de um drama ocorrido em um mundo transcendente e uma das consequências seria a criação dos seres humanos. Por outro lado, o livre arbítrio não representa nenhum papel na gnose valentiniana quanto ao desenvolvimento dos acontecimentos. Não somente o das criaturas, que todavia não existem, como também o da iniciadora do drama, Sophia, pois seu desejo irrefreável de ver o Pai não é uma vontade livre; tampouco o é o processo pelo que o Demiurgo cria; talvez o seja, em certa medida a insuflação dos germens pneumáticos por parte de Achamoth. Mas, como a distinção das três naturezas do homem, tudo foi pensado para economizar o mais possível o livre arbítrio.

A hipótese da preexistência das almas e a versão da queda à ela ligada são certamente o mais caduco no pensamento origeneano e, como o havíamos dito antes, foram rapidamente impugnadas pelos adversários do Alexandrino, sem serem sustentadas, mas sim tão somente explicadas, por suas apologias. No entanto, tudo isso será desenvolvido e sistematizado e se tornará um dos pontos essenciais do organismo posterior, tanto do século IV quanto do século VI. O qual é compreensível em parte por razão da polêmica contra os hereges do século III, valentinianos e marcionitas, e pelo Platonismo Médio que constitui o universo   do pensamento filosófico onde se move Orígenes. Todos os elementos não são necessariamente carentes de valor  , especialmente as concepções do pecado.

Alguém poderia se perguntar que vínculo tem esta pretensa história do homem com os relatos da criação segundo o livro do Gênesis. Lamentavelmente, já não temos, exceto alguns fragmentos e alguns dados provenientes de autores posteriores, o Comentário sobre o Gênesis que provavelmente explica-se alegoricamente neste sentido os primeiros capítulos do livro: devemos contentar-nos com a primeira homilia sobre este livro, que provavelmente sobre este ponto é menos explícita que o Comentário, e também com alusões espalhadas aqui e ali. Como foi dito antes a propósito da antropologia tricotômica e da imagem de Deus, o capítulo 1 do Gênesis descreve a criação das inteligências preexistentes, aplicando-se a menção do homem e da mulher não à uma sexualidade, que ainda não existe, mas sim à Cristo preexistente em sua humanidade e à sua Esposa, a Igreja da preexistência, conjunto   das inteligências. O capítulo 2 fala da criação do corpo, mas pesa sobre ele uma forte   impressão  : se trata-se do corpo terreno e sexuado consecutivo à queda, como veria Orígenes neste capítulo 2, anterior ao capítulo 3, que descreve a queda ? Segundo o testemunho de Procópio de Gaza — o temos visto antes — ? o Comentário sobre o Gênesis o interpretava como o corpo "centelhante" que revestia a inteligência preexistente e então as duas criações, a do capítulo 1 e a do capítulo 2, deveriam ser consideradas como concomitantes, posto que uma criatura não pode existir sem corpo. Mas, neste caso, que fazia Orígenes com os versículos 21 ao 25 do capítulo 2, acerca da criação da mulher e de sua união com o homem por iniciativa do próprio Deus, texto que ocupa um lugar importante na concepção origeneana do matrimônio como na de toda Igreja primitiva ? Interpretava ele somente o "grande mistério" da União de Cristo e da Igreja e só indiretamente da união do homem e da mulher, sua imagem ? No Comentário sobre o Gênesis , no capítulo 3 devia figurar a queda, e nas "túnicas de pele" do versículo 21, segundo Procópio de Gaza, a "qualidade" terrestre que adiante esconderá o esplendor do "corpo cintilante" que revestia a inteligência preexistente.

Então, só nesse momento pode-se falar de uma segunda criação concernente ao mundo sensível a respeito de um corpo sexuado: Orígenes mesmo observa que a Escritura menciona que "Adão   conheceu a sua esposa Eva" justo depois de quando haviam abandonado o Paraíso.

Para complicar, entretanto, mais o quadro agreguemos que não é de modo algum seguro que Orígenes, ainda que alegorizando-os, não tenha visto em Adão e em Eva personagens reais. Assim se depreende de algumas expressões e, de todos os modos, tanto para Orígenes quanto para Paulo a alegorização de um relato não é incompatível com a crença em sua historicidade. A perda do Comentário sobre o Gênesis nos impede de responder à estas questões, mas podemos estar seguros de que Orígenes se saía bem, com sua inteligência habitual, de todas estas dificuldades.


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