Saibam que Aquele que é chamado de Alá é um na Essência e tudo por Seus nomes, e que todo o ser condicionado não se associam [como tal] a Deus senão exclusivamente através de seu próprio Senhor (rabb ); pois é impossível que a totalidade [dos Nomes ou dos aspectos divinos] se refira ao ser particular. No tocante à Unidade (al-ahadiyah) divina, ninguém dela participa, pois não se pode dela designar aspectos; ela não está sujeita à distinção. A unidade de Deus integra a totalidade [dos Nomes e das Qualidades] na indiferenciação principial.
O “bem-aventurado ” (as-sa’id) é aquele “cujo Senhor está contente” [Corão XIX, 55]; ora, não existe ninguém cujo próprio Senhor não esteja contente, pois é por ele [a saber, por este ser relativo] que sua senhoridade subsiste; todo ser é, assim, “apropriado” por seu Senhor e [sob este aspecto] cada qual é “bem-aventurado”. É por isto que Sahl at-Tostari diz: “a Senhoria [divina, ar-rububiyah] comporta um segredo, e este segredo é ti mesmo” – ele dirige-se a todos os indivíduos – “se ele pudesse manifestar-se [ou seja, se ele pudesse ser conhecido por outrem], a Senhoridade seria abolida” [1]; ele diz: “se ele pudesse manifestar-se” porque de fato ele não se manifesta jamais, de sorte que a Senhoridade não será abolida. Pois nenhum indivíduo existe independentemente de seu Senhor [que é a “polarização” do Ato divino a seu respeito]; por outro lado este indivíduo existe perpetuamente [quer dizer, através de todas as existências formais, ao indefinido, mas não eternamente], de sorte que a Senhoridade [que se funda nele] subsiste igualmente à perpetuidade .
Aquele que é [em princípio] apropriado por seu senhor é amado dele; e tudo o que faz o amado é igualmente amado; tudo é portanto apropriado pelo Senhor; pois o indivíduo não poderia agir sem que a ação pertencesse ao Senhor que age nele. É por isso que o indivíduo [conhecendo seu Senhor] “se apazigua”, confiante que nenhuma ação lhe será atribuída, e que ele se contenta disto que nele aparece das ações de seu Senhor [2], O qual apropria estas ações, pois todo autor está contente de sua obra, posto que ele perfaz sua obra segundo o que ela exige por conta de sua natureza; [assim que é dito no Corão]: “Aquele que dá a cada coisa sua natureza, em seguida Ele guia ” [Corão XX, 50], quer dizer: em seguida Ele revela que é Ele quem deu a cada coisa sua natureza, de modo que ela não poderia ser nem mais nem menos [que isto que ela é].
“Ismael foi apropriado pelo seu Senhor” [Corão XIX, 55], porque ele havia reconhecido isto que acabamos de explicar. Do mesmo modo, todo ser existente é [em princípio] apropriado por seu Senhor, sem que isto implique necessariamente que cada um seja apropriado pelo Senhor do outro, pois a Senhoridade só se define a respeito de cada um em particular, [posto que ela é a relação “pessoal” do indivíduo para com Deus], de sorte que ela não concerne Deus senão segundo um de Seus aspectos, que corresponde à predisposição (isti’dad) do indivíduo; eis aí o “Senhor” deste indivíduo particular. Nenhum [ser particular] associa-se [como tal] a Deus em virtude de Sua Unidade [suprema]. É por causa disto que os homens de Deus não podem receber “revelação” (tajalli ) na Unidade (al-ahadiyah); pois se tu O contemplas por Ele mesmo, é Ele que se contempla Ele mesmo; Ele não cessa portanto de ser Ele mesmo Se contemplando por Ele mesmo; se tu O contemplas por ti, a Unidade deixa de ser a Unidade, por conta de ti; e se tu O contemplas por Ele e por ti, a Unidade cessa igualmente de ser o que ela é, porque o pronome da segunda pessoa supõe que existe outra coisa além do único contemplado ; haverá aí necessariamente uma relação qualquer e por conseguinte uma dualidade do contemplante e do contemplado, donde a cessação da Unidade, embora não exista [em princípio] mais que Ele que Se contempla Ele mesmo, pois sabes bem que tanto o contemplante como o contemplado não são “outro senão Ele”.
Por este fato, não é possível que o indivíduo “apropriado por seu Senhor” seja apropriado [por Deus] absolutamente [3], a menos que tudo isto que ele manifesta provenha do Senhor apropriante, que nele age [4].
É assim que Ismael é distinguido de outros indivíduos, porque é dito dele que ele “foi apropriado pelo seu Senhor”.
O mesmo acontece com toda alma apaziguada, à qual está endereçada a palavra [corânica]: “Ó tu, alma apaziguada! Volta para o teu Senhor, contente e em paz ; entra para os Meus servidores, entra em Meu paraíso!” [Corão LXXXIX, 27], quer dizer: volta ao Senhor que te chamou antes e que reconhecestes em meio à totalidade [dos aspectos divinos] – “contente, apropriada; entra entre Meus servidores” – Me adorando nesta estação espiritual; pois dentre o número dos servidores de que se trata aqui está alguém que reconheceu seu Senhor, que se satisfaz d’Ele e que não se volta para o Senhor de um outro servidor [5], reconhecendo eminentemente a Unidade essencial [de todos os seres]; – “e entra em Meu paraíso” (jannah) – quer dizer em meu Véu [6], pois este paraíso não sendo outro que ti mesmo, pois é ti mesmo que Me ocultas por esta natureza humana; Eu não sou conhecido senão de ti, como tu não existes senão por Mim; quem te conhece, Me conhece, embora ninguém [fora Mim mesmo] não Me conheça [essencialmente], de sorte que tu também não é conhecido de ninguém. Ora, se entras em Seu paraíso, entras em ti mesmo, e te conhecerás a ti mesmo por um outro conhecimento, diferente daquele que te fez conhecer teu Senhor [em conhecendo tua alma], de sorte que possuirás dois conhecimentos: conhecerás Deus a teu respeito, e O conhecerás por ti mesmo enquanto Ele é Ele, não enquanto tu existes.