Esta “Natividade de Noite” não trata de um nascimento físico, mas da representação de um “mistério”. De fato, nesta imagem, toda luz emana do luminoso filho Jesus , que nada tem de um bebê ordinário: a luz aqui, não é a “luz natural do sol, da lua e das estrelas”, mas a luz da Divindade, “a imagem do Deus invisível, o primeiro nascido de toda Criação” (p. 133), o Filho, a fonte essencial e a origem da luz e do ser. Deve-se notar a luminosidade intrínseca do bebê, de onde emanam claramente os raios divinos, assim como o fraco esplendor dos minúsculos fogos dos pastores, ao longe, sobre a colina, que denotam a fraqueza da luz natural em contraste com o brilho da “luz do espírito”, denominada também “luz verdadeira”.
Deus é invisível, desconhecido , “nenhum homem viu Deus”. Ora, paradoxalmente, como por encantamento , temos aqui “a perfeita imagem do Deus invisível”.
“Quem me vê vê também meu Pai” (Jo 14,9)“O Filho único, aquele que está no coração do Pai, o faz conhecer” (Jo 1,18)
Pois se a alma está unida a Deus, o que o olhar percebe é uma “pessoa ” — cujo interior invisível faz “um com o Pai”. Ora esta união não é a transformação da dualidade em unidade , mas o mistério do Uno em relação com Ele mesmo (a Trindade ):
“Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30)“Eu sou no Pai e o Pai é em mim” (Jo 14,11)“Deus nasce de Deus, a Luz, da Luz, Uma só Luz, Um só Deus”. (p. 96)
O Filho — este recém-nascido de luz — é a ponte entre o criado (o universo ) e o incriado (Deus), e participa perfeitamente dos dois reinos. “Quando lemos que ‘Deus enviou ao mundo seu Filho único’, diz Eckhart , não se deve entender por isto o mundo exterior no qual comeu e bebeu, mas o mundo interior”. (p. 96)
"Esta geração não conhece nem movimento nem tempo... o Filho na Divindade, a Palavra ’no Princípio’ ainda está nascendo e sempre existiu." (p. 125)
Esta é a interface paradoxal onde o homem e Deus, o tempo e a eternidade , a luz e as trevas se encontram. À nossa imagem, é o mistério da Divindade doando-se em vida, em luz e em ser.
O menino Jesus está nu. Muitos presépios mostram o bebê envolto em cueiros, que prefiguram o sudário, a crucificação de Jesus e sua morte. Aqui, porém, não se trata da condição do homem mortal , mas da Vida Eterna que está em nós, no âmago do nosso ser. A nudez , nesta imagem, não se refere à “pura intenção da vontade” dos esforços e aspirações do homem como encontramos esta noção em um tratado devocional como A Nuvem do Desconhecido ; nenhum "esforço da vontade" à nossa imagem, onde este recém-nascido perfeitamente relaxado e nu, esta criança luminosa e radiante tem um duplo sentido: representa antes de tudo, do ponto de vista da Divindade, o dom de ser, dado uma vez por todas e sempre novo a cada momento; em segundo lugar, e desta vez do ponto de vista da alma, simboliza a nudez da perfeita receptividade humana:
“Quanto maior a nudez, maior a união” (p. 105), escreve Eckhart em seu comentário ao Gênesis. Somente a receptividade pura, que consiste em conhecer o que Eckhart chama de nossa “nulidade”, nos torna permeáveis à luz.
O Verbo estava "no princípio" porque o Filho nunca deixa sua Origem, o Pai. O Verbo está "com Deus" na medida em que o Filho é uma pessoa distinta do Pai, e o Verbo "era Deus", pois o Filho é em essência idêntico ao Pai. "Ele estava no princípio com Deus", isto é, escreve Eckhart, "a imagem ’estava no princípio com Deus’, de modo que o padrão não pode ser entendido sem a imagem e vice-versa. “Quem me vê também vê meu Pai”. (p. 130).
E o texto continua assim. A frase “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus” refere-se apenas a Deus, isto é, à Trindade representada aqui pelo filho
“Ninguém conhece a Trindade, mas somente Deus e o homem que é: incluído nela”. (pág. 127)“Deus é luz e não há trevas nele”.
Chegamos agora à criação: “Todas as coisas foram criadas por ele”. Em nossa imagem, exceto a criança, tudo é criado: fora dela, tudo o mais, isto é, a criação, participa tanto da luz quanto da escuridão. Também observamos que todas as criaturas, nesta "Natividade", são luminosas no sentido de que tendem para a luz, e são escuras porque a luz lhes está oculta:
“A ‘luz’ é Deus e tudo o que é divino e perfeito; ‘trevas’ é tudo o que é criado...” “Portanto, ‘a luz’, perfeição divina, ‘brilha nas trevas’ mas ‘as trevas não a compreenderam’, quer dizer que ela não se tornou uma fonte de luz... Em uma ação Ele (Deus) engendra o Filho que é seu herdeiro, luz da luz, e fez a criação que é escuridão, algo de criado, e não um Filho ou um herdeiro da luz... ” (pág. 148)
Eckhart comenta o versículo “Todas as coisas foram criadas pela Palavra” assim: “João não diz que as coisas não têm outras causas, mas ele quer dizer que um efeito deriva seu ser somente de Deus, e de nenhuma outra causa . “O Ser e a Vida que se espalham em nós não têm outra fonte, Senhor, senão o fato de que Tu nos criaste... pois Tu és o Ser Supremo e a Vida suprema” (Santo Agostinho , p.140). As criaturas são Luz na medida em que seu ser vem de Deus, e são trevas porque não têm ser em si mesmas. Assim, o versículo “a luz brilha nas trevas” relaciona-se, de acordo com essa interpretação, com Deus nas criaturas.
“E sem ele nada foi criado” significa que o ser da criação é continuamente assegurado pela presença do Filho: de fato, se retirássemos o menino Jesus do quadro, tudo estaria imerso na ‘escuridão’.
“O que havia nele era vida”: deve-se entender que “Deus é vida” (p. 144), e que as criaturas estão verdadeiramente vivas na medida em que a fonte de sua vida é a vida divina.
“E a vida era a luz dos homens” é assim explicado: “As obras humanas são luz quando estão vivas na vida do espírito”.
A “Natividade de Noite” mostra maravilhosamente que o conjunto do criado recebe a luz segundo o grau de receptividade ou de proximidade com o divino . Assim a face da santa Virgem e aquelas dos anjos do nível mais elevado estão inteiramente banhadas de claridade e refletem perfeitamente a luz. Muito próximos da Fonte Divina, estão em contato direto com ela. Estão absorvidas, e nada não distrai sua atenção: miraculosamente, é no mundo que testemunham da Presença de Deus.
Todos aqueles que contemplam diretamente a Luz se inclinam diante dela: primeiramente Maria, cujas mãos juntas em um gesto de oração dirigem nossa atenção para a Fonte de Luz; em segundo lugar José, que se vê atrás de Maria, um pouco mais afastado da Luz mas representado todavia ele também em uma bela atitude de devoção, a mão no coração; enfim, a hierarquia dos anjos, diferentemente iluminados segundo seu nível — há com efeito vários tipos de anjos, e aqueles que contemplam diretamente Deus e níveis na nossa imagem, são ao mesmo tempo diferenciados entre eles e distinguidos do anjo de Anunciação: notemos a este respeito as variações da luz.
Os animais , no centro da imagem atrás da creche, são igualmente interessantes: eles beneficiam eles também de uma visão direta da presença divina, mas devido ao pelo que cobre suas faces não podem refletir a Luz da mesma maneira que os homens ou os anjos (o boi e o asno, tradicionalmente representados lado a lado e calmos, simbolizando os irmãos inimigos reconciliados: os contrários se acordam na visão do Todo).
Enfim, ao longe, percebe-se os pastores, que representam aqueles que vivem mais longe da Divindade, quer dizer no exterior. Como os habitantes da caverna de Platão, percebem “as sombras” deste mundo graças à luz natural dos sentidos, e não podem ver diretamente a “luz verdadeira”. Todavia o anjos da Anunciação aparece ao mesmo tempo diretamente acima do pequenino Jesus e em um outro plano, diretamente acima dos pastores: faz assim a ligação entre o mundo exterior e o mundo interior, e alguns dos pastores buscam proteger seus olhos desta claridade inusitada. Na época em que viveu o Cristo, os pastores eram geralmente considerados como bandidos e párias, e neles se via a parte mais vil e a menos recomendável da humanidade. Nestas condições, se até mesmo os pastores estão preocupados com a Anunciação, é claro que este convite se estende a toda a humanidade.
A disposição triangular das mãos de Maria, em referência à Trindade, é acompanhada pelo triângulo formado pelo menino Jesus, o anjo e os pastores; a tripla ordem do ser se reflete e ressoa em todos os níveis, e Eckhart usa diferentes tríades para descrevê-la: Deus, homem e universo; a razão superior ligada a Deus, a razão inferior voltada para as coisas externas e os sentidos; Adão , Eva e a serpente , como em seu comentário sobre Gênesis.
Finalmente, em relação ao universo criado, Eckhart distingue quatro graus no ser: "O primeiro grau é o do ser simples, o segundo, o do ser vivo, o terceiro grau é o intelecto humano, o quarto, o do intelecto dos anjos... desvinculados da matéria e da imagem”.
No Evangelho de João, essa hierarquia corresponde a: “Aquilo que era” (simples ser); “nele estava a vida” (ser vivente); “e a vida era a luz dos homens” (intelecto humano) e “a luz brilha nas trevas” (intelecto angélico).
Podemos encontrar esses quatro graus de ser em nossa pintura. O primeiro ("o que era", para ser simples), é difícil de perceber, pois está no escuro e reflete muito pouca luz. Mas, examinando mais de perto, vemos que suporta tudo o mais: a manjedoura de madeira ou pedra na qual o menino Jesus está deitado, a estrutura de tijolos e madeira do estábulo, o bebedouro contra a parede atrás de José e até a terra que, ao fundo, sustenta a vegetação verdejante, os pastores e as ovelhas, e que brilha como se refletisse a luz do anjo. O ser vivo está também representado, na vegetação e nos animais como o boi, o burro e a ovelha, tendo as suas várias formas também significados próprios e uma ordem particular que as rege. O intelecto humano está presente com Maria e José e o intelecto angélico, por sua vez, já foi mencionado. Sobre a excelência desse intelecto angelical, Eckhart afirma que ele é “o mais nobre e belo no reino do intelecto”; portanto, aquele intelecto "que não podemos ver ou conhecer é simbolizado pela escuridão". Eckhart continua esse raciocínio escrevendo que “se mesmo as trevas que esses intelectos superiores e excelentes representam não podem compreender a luz que é Deus, então é evidente que ele é absolutamente ‘incompreensível ao pensamento’”.
Em suma, esta pintura baseada no contraste entre luz e escuridão não é apenas uma simples cena noturna, mas, por assim dizer, uma representação transversal da perfeição espiritual invisível específica de cada momento da criação: o ser de luz (Deus ), e o não-ser do universo em que a luz brilha. Com a ajuda dos escritos do Mestre Eckhart, podemos de fato ver nesta pequena imagem toda a ordem divina: os seres criados e incriados; a emanação da Trindade dentro da Divindade; as propriedades divinas das três Pessoas, e notavelmente do Filho; a Trindade como causa na criação do universo, e os quatro graus de ser no universo criado.
Texto e imagem são ambos objetos de meditação e, como tal, nos conduzem naturalmente ao mundo de significados ao qual ambos se relacionam: "E nós (sim, nós!), diz Eckhart, vimos sua glória , a glória do Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.
É compreendendo nossa identidade essencial que o "Verbo se fez carne e habita entre nós", e é assim também que "nós somos transformados nesta mesma imagem" (p. 169). O que acontece ao nosso ser através da contemplação, embora Deus permaneça "absolutamente incompreensível ao pensamento", nos une a ele.