É mais fácil purificar o vaso ou o prato que o coração . O vaso ou o prato que se vê, mas que é o coração? Esta emoção súbita ou este desejo, que sobem de meu coração, me revelam as profundezas do coração?
De pronto se coloca a questão do conhecimento do coração, de sua verdade em oposição às ilusões da sensibilidade , de suas profundezas que não alcançam os desejos superficiais, do amor ao mesmo tempo invisível em sua fonte e visível em seus signos. As oposições «profundeza-superfície», «verdade-ilusão», «visível-invisível» correspondem à distinção bíblica do homem interior e do homem exterior .
O coração está no interior, secreto, profundo e o homem jamais parou de explorar os espaços de seu próprio coração. O coração é isto que está «no coração», quer dizer no centro . É daí que nascem não somente os pensamentos e as vontades, mas a vida ela mesma:
Guarda teu coração, dizem os Provérbios, pois dele brotam as fontes da vida.
O coração ele mesmo é fonte posto que dele provém os pensamentos e as intenções que subentendem os atos. Origem e centro, é ao mesmo tempo o lugar da interioridade — onde as metáforas do centro, abismo ou cume, coincidem —, e aquele da unidade — onde o homem é apreendido em seu centro, antes ou além das distinções das faculdades ou dos poderes da alma .
O conhecimento do coração está ligado a este duplo movimento de interiorização e de unificação: voltar-se ao coração, é unificar a inteligência e o coração ou «fazer descer a inteligência no coração», como diriam certos Padres da Igreja oriental; e este retorno ao coração é um retorno a Deus : não é o homem, mas Deus que é o centro do homem e se o pecado fecha o homem sobre sua própria autonomia , a graça o abre a Deus que é seu princípio e seu fim.
É Deus que fez o coração do homem a sua imagem e a sua semelhança (Imagem e Semelhança). Isto que significa que «algo» do coração do homem nos fez conhecer o coração de Deus. Mas a impureza tornou o coração opaco a Deus e a ele mesmo e só o coração puro ou o coração dos santos manifesta o amor de Deus que o fez e para quem é feito.
É Deus que conhece o coração do homem. Desde o canto do salmista até as afirmações repetidas do Evangelho de João, parece que só Deus conhece o coração do homem pois «nada está oculto a seus olhos».
O coração do homem é segredo e não pode ser conhecido senão pela mediação dos atos e das palavras. É semelhante a uma árvore que é reconhecida por seus frutos: uma boa árvore produz bons frutos e uma má árvore produz de maus frutos.
Há outras imagens evangélicas do coração: aquela do tesouro de que se tira boas ou más coisas e aquela do campo . A comparação do campo e do coração se refere a duas parábolas: aquela do semeador que semeia em uma boa terra onde a semente produz fruto em abundância ou em uma má terra onde «o Maligno se ampara do que foi semeado no coração do homem» e o cardo sufoca a semente, e aquela do campo onde o diabo vai semear o joio. O coração é uma terra que recebe a semente da Palavra de vida — e a imagem desta «boa terra» é Maria «Terra virgo», mas o diabo semeia também sementes de morte. E é preciso «limpar» o coração, como se limpa o campo arrancando o joio ou o cardo que o invadem.
Mas o coração é também o lugar onde se afrontam as trevas e a luz e sua purificação e então uma iluminação: a vinda à luz de que fala Jesus à Samaritana em João 4 e a iluminação batismal ou penitencial. A imagem da passagem das trevas à luz apreende o reconhecimento do pecado no ato de conversão do pecador. O conhecimento das «trevas» do coração humano exige a irrupção da luz nas «profundezas» do coração e a «mentira » do coração do homem não pode ser conhecida senão «fora de si».
Não é senão no estado de êxtase que, segundo Gregório de Nissa comentando o texto grego da Septuaginta do Salmo 115, David pôde dizer: «Omnis homem mendax est». Esta descoberta da «mentira» radical do coração do homem, que não cessa de se desviar de Deus, ou de sua impureza profunda corresponde à experiência simétrica da impossibilidade de um ato totalmente puro: todos os atos e as palavras do homem são manchadas de impureza e de mentira, pois o homem não é senão mentira e seu coração é impuro.
Donde o clamor do salmista: «Ó Deus, cria para mim um coração puro, restaura em peito um espírito firme ...» (Salmo 51,12).
Quem poderá purificar o coração do homem? Quem poderá lhe dá um «coração novo», senão o Espírito De Deus que ressuscita os mortos. Pois a purificação do coração não é somente uma passagem das trevas à luz, mas também da morte à vida. Quem poderá desvelar no coração do homem os germes de morte senão este mesmo Espírito de Deus? Mas o que é o puro e o impuro?