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Mariás (TH) – Leibniz

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Gottfried Wilhelm Leibniz   nasceu em Leipzig no ano 1646 — justamente meio século depois de Descartes   — e morreu em Hannover em 1716. É conhecida sua portentosa formação intelectual, que ia desde a matemática até a história, da física à teologia, do direito à metafísica, e que abrangia a totalidade do saber de seu tempo. Se houve realmente um espírito enciclopédico, depois de Aristóteles, foi na verdade Leibniz. Daí a grandeza incomparável de seu pensamento: em cada frase sua isolada se sente, como um murmúrio, a ressonância da história humana inteira. Leibniz resume, sobretudo, a filosofia íntegra, desde os gregos até ele próprio e, de um modo eminente, a do século em que lhe coube viver, uma das épocas mais plenas de substância filosófica. Leibniz, que conhecia muito bem os antigos e os escolásticos medievais, possui toda a ciência do [1] e está submerso no mais profundo da metafísica racionalista do século XVII; em sua mente se encontram, portanto, todas as correntes filosóficas, e alcançam nela uma unidade superior. Daí que, por sua vez, Leibniz haja sido um fermento filosófico eficaz, e haja feito a metafísica caminhar consideravelmente.

Leibniz recolhe a tradição filosófica imediata, que vai de Descartes a Spinoza  ; mas, diferentemente de outros pensadores da época, inclui amplamente em seu sistema estímulos vindos de muito longe, inclusive da Escolástica, que em geral se costumava evitar com hostilidade mesclada de ignorância. Isto dá uma riqueza extraordinária a seu modo de colocar os problemas e permite-lhe voltar-se, em uma reflexão crítica, sobre os pressupostos do idealismo racionalista de seu tempo. Pense-se, por exemplo, em sua concepção da substância como mônada, constituída por seu próprio haver íntimo, que supera totalmente a ideia da substância como algo "independente", em que se movem Descartes e Spinoza, para voltar a uma noção profundamente ligada à da ousia aristotélica. Mas, por outro lado, não se pode esquecer que Leibniz está condicionado pelas crenças fundamentais de sua circunstância: é, como não podia deixar de ser, idealista. E isto empana às vezes o mais original e fecundo de suas descobertas, muito especialmente acerca deste tema do homem que aqui nos ocupa. Recorde-se sua arbitrária e estranha doutrina da harmonia preestabelecida, que — atentando-se bem — contradiz ao mais profundo de sua metafísica, e que é apenas o expediente de que Leibniz se vale — como Descartes de sua teoria da glândula pineal e Malebranche da hipótese ocasionalista — para tentar escapar às dificuldades insolúveis que a posição idealista traz consigo. Convém, pois, tentar uma visão de Leibniz que se proponha a difícil tarefa de libertá-lo das aderências extrínsecas, para chegar ao cerne mesmo de sua grande intuição: o ser dinâmico da mônada e, sobretudo, sua peculiar ideia de substância, que culmina na noção de pessoa.

Por isto tem grande interesse sua especulação sobre o homem, que excede em muito a quantas encontramos nos demais filósofos modernos. A rigor, supera os termos em que se formulava a questão do ente humano e, mais que acrescentar algo — o quanto valioso se queira — a ela, dá-lhe uma volta radical: o homem não é propriamente uma coisa mais — ou, como se propende a pensar no idealismo, duas coisas (alma e corpo) intimamente unidas e ao mesmo tempo díspares —, mas sim essa tremenda realidade que chamamos pessoa: algo que vive, que consiste em pura dinamicidade, em força representativa, que é "um espelho vivo", um ponto de vista da perspectiva total do universo, e que ao mesmo tempo tem consciência disso, possui-se a si mesmo, tem um fundo próprio e originário e mantém-se em uma rigorosa identidade, cujo fundamento próximo é a memória. Convém não esquecer que tudo isto foi pensado com todo rigor cerca de 1680, e que nem sempre foi assinalado de um modo suficiente, muito pelo contrário: o que pode lançar não pouca luz sobre a estrutura da história da filosofia. Mas é preciso entrar imediatamente nas próprias palavras de Leibniz.

Preferi fazer a seleção dos textos leibnizianos entre os escritos mais breves de seu autor, porque Leibniz gostava de formular e repetir de diferentes pontos de vista suas ideias fundamentais, e dificilmente haverá alguma entre elas que não figure nos exíguos opúsculos que gostava de escrever. Por outro lado, enquanto nos livros formais perde-se em digressões polêmicas, nos folhetos resume sucintamente — de um modo já quase antológico — o mais vivo e acertado de seu pensamento.

Entre a copiosa bibliografia leibniziana pode-se consultar: E. Nourrisson: La philosophie de Leibniz (1860); W. Dilthey  : Leibniz und sein Zeitalter (G.S-, III); J. Baruzi: Leibniz et l’organisation religieuse de la terre (1907); G. Stammler: Leibniz (1930).


[1Renascimento