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Leibniz (Mariás) – Excertos da obra

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

A NOÇÃO DA SUBSTÂNCIA INDIVIDUAL

Visto que as ações e as paixões pertencem propriamente às substâncias individuais (actiones sunt suppositorum), seria necessário explicar o que é tal substância. É muito certo que quando se atribuem predicados diversos a um mesmo sujeito, a este sujeito não se atribui a nenhum outro, chama-se-lhe substância individual; mas isto não basta, e tal explicação é só nominal. Deve-se considerar, pois, o que significa ser atribuído verdadeiramente a certo sujeito. Ora, consta que toda predicação verdadeira tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, isto é, quando o predicado não está compreendido expressamente no sujeito, tem que estar compreendido nele virtualmente, e isto é o que os filósofos chamam in-esse, dizendo que o predicado está no sujeito. É preciso assim que o termo do sujeito encerre sempre o do predicado, de sorte que aquele que entendesse perfeitamente a noção do sujeito julgaria também que o predicado lhe pertence. Sendo isto assim, podemos dizer que a natureza de uma substância individual ou de um ente completo é ter uma noção tão completa que seja suficiente para compreender e fazer deduzir dela todos os predicados do sujeito a quem essa noção se atribui. O acidente, pelo contrário, é um ente cuja noção não encerra tudo o que se pode atribuir ao sujeito a quem se atribui essa noção. Assim a qualidade de rei que pertence a Alexandre Magno, fazendo abstração do sujeito, não está bastante determinada a um indivíduo e não encerra as demais qualidades do mesmo sujeito nem tudo o que a noção deste príncipe compreende; enquanto Deus, ao ver a noção individual ou ecceidade de Alexandre, vê nela ao mesmo tempo o fundamento e a razão de todos os predicados que se podem dizer dele verdadeiramente, como, por exemplo, que venceria Dario e Poro, conhecendo até nela a priori (e não por experiência) se morreu de morte natural ou envenenado, o que nós só podemos saber pela história. E quando se considera bem a conexão das coisas, pode-se dizer que há em todo tempo na alma de Alexandre restos de tudo o que lhe aconteceu e os sinais de tudo o que lhe acontecerá, e inclusive traços de tudo o que acontece no universo, embora pertença só a Deus o conhecê-los todos.

Seguem-se disto vários paradoxos consideráveis, como, entre outros, que não é certo que duas substâncias se assemelhem inteiramente e sejam diferentes solo numero, e que o que São Tomás assegura acerca deste ponto dos anjos ou inteligências (quod ibi omne individuum sit species ínfima), é verdade de todas as substâncias, sempre que se tome a diferença específica como a tomam os geômetras a respeito de suas figuras; item que uma substância só poderia começar por criação e perecer por aniquilação; que não se divide uma substância em duas, nem se faz de duas uma, e que assim o número de substâncias não aumenta nem diminui naturalmente, embora se transformem com frequência. Ademais, toda substância é como um mundo inteiro e como um espelho de Deus ou mesmo de todo o universo, que cada uma expressa a sua maneira, analogamente a como uma mesma cidade é representada de modo diverso segundo as diferentes situações daquele que a olha. Assim o universo está de certo modo multiplicado tantas vezes quantas substâncias há, e a glória de Deus está igualmente redobrada por outras tantas representações diferentes de sua obra. Pode-se dizer inclusive que toda substância mostra de algum modo o caráter da sabedoria divina e da onipotência de Deus, e a imita enquanto é susceptível disso. Pois expressa, embora confusamente, tudo o que acontece no universo, passado, presente ou futuro, o que tem alguma analogia com uma percepção ou conhecimento infinito; e como todas as demais substâncias expressam esta por sua vez e acomodam-se a ela, pode-se dizer que estende sua potência sobre todas as demais, imitando a onipotência do Criador.

(Discours de métaphysique, 8-9.)

AS IDEIAS INATAS

Para compreender bem o que é uma ideia deve-se evitar um equívoco, pois muitos tomam a ideia pela forma ou diferença de nossos pensamentos, e deste modo só temos a ideia na mente na medida em que pensamos nela, e quantas vezes pensemos nela de novo, temos outras ideias da mesma coisa, embora semelhantes às precedentes. Mas parece que outros tomam a ideia como um objeto imediato do pensamento ou alguma forma permanente que persiste quando não a contemplamos. E, com efeito, nossa alma tem sempre em si a qualidade de representar-se qualquer natureza ou forma, quando se apresenta a ocasião de pensar nela. E eu creio que esta qualidade de nossa alma, na medida em que expressa alguma natureza, forma ou essência, é propriamente a ideia da coisa que está em nós, e que está sempre em nós, pensemos ou não nela. Pois nossa alma expressa Deus e o universo e todas as essências de igual modo que todas as existências. Isto está de acordo com meus princípios, pois naturalmente nada nos entra no espírito de fora, e é um mau costume que temos, pensar como se nossa alma recebesse algumas espécies mensageiras, e como se tivesse portas e janelas. Temos no espírito todas essas formas, e inclusive desde sempre, porque o espírito expressa sempre todos seus pensamentos futuros, e já pensa confusamente em tudo o que alguma vez pensará distintamente. E não se nos poderia ensinar nada cuja ideia não tivéssemos já na mente, pois essa ideia é como a matéria de que se forma esse pensamento. É isto o que Platão considerou de um modo excelente quando expôs sua reminiscência, que tem muita solidez, desde que se lhe a entenda bem, que se a liberte do erro da preexistência e que não se imagine que a alma tem que ter sabido e pensado já distintamente em outro tempo o que apreende e pensa agora. Confirmou também sua opinião mediante uma bela experiência, introduzindo um jovem a quem leva insensivelmente a verdades dificílimas de geometria acerca dos incomensuráveis, sem nada ensinar-lhe, unicamente fazendo-lhe perguntas ordenadas e oportunas. O que mostra que nossa alma sabe tudo isso virtualmente e só necessita animadversión para conhecer as verdades, e, por conseguinte, que tem pelo menos as ideias de que essas verdades dependem. Pode-se dizer inclusive que possui já essas verdades, quando se as entende como as relações das ideias.

(Discours de métaphysique, 26.)

A AÇÃO DIVINA

No rigor da verdade metafísica não há causa externa alguma que atue sobre nós, exceto Deus, e só ele se comunica conosco imediatamente em virtude de nossa dependência contínua. De onde se segue que não há outro objeto externo que afete nossa alma e excite imediatamente nossa percepção. Ademais, só temos em nossa alma as ideias de todas as coisas em virtude da ação contínua de Deus sobre nós, isto é, porque todo efeito expressa sua causa, e assim a essência de nossa alma é uma certa expressão ou imitação ou imagem da essência, pensamento e vontade divinos e de todas as ideias que neles estão compreendidas. Pode-se dizer, pois, que só Deus é nosso objeto imediato fora de nós, e que vemos todas as coisas por ele; por exemplo, quando vemos o sol e os astros é Deus quem nos deu e conserva suas ideias e quem determina a pensar neles efetivamente por seu concurso ordinário, no tempo que nossos sentidos estão dispostos de certa maneira, segundo as leis que estabeleceu. Deus é o sol e a luz das almas, lúmen illuminans omnem hominem venientem in hunc mundum; e não é de hoje esta opinião. Depois da Sagrada Escritura e dos Padres, que foram sempre mais partidários de Platão que de Aristóteles, lembro haver observado em outra ocasião que na época dos escolásticos vários acreditaram que Deus é a luz da alma, e, segundo seu modo de falar, intellectus agens animae rationalis. Os averroistas emprestaram-lhe um mau sentido; mas outros, entre os quais creio que se encontra Guillaume de Saint-Amour, e vários teólogos místicos, entenderam-no de um modo digno de Deus e capaz de elevar a alma ao conhecimento de seu bem.

Não sou, no entanto, da opinião de alguns filósofos penetrantes, que parecem sustentar que nossas ideias mesmas estão em Deus e de maneira alguma em nós mesmos. Isto decorre, a meu juízo, de que ainda não consideraram suficientemente o que acabamos de explicar aqui acerca das substâncias, nem toda a extensão e independência de nossa alma, que a faz encerrar tudo o que lhe acontece, e que expresse Deus e com ele todos os entes possíveis e atuais, como um efeito expressa sua causa. Ademais, é uma coisa inconcebível que eu pense com as ideias de outro. É necessário também que a alma seja afetada efetivamente de certo modo quando pensa em algo, e tem que haver nela de antemão, não só a potência passiva de poder ser assim afetada, a qual já está totalmente determinada, como além disso uma potência ativa, em virtude da qual houve sempre em sua natureza sinais da futura produção desse pensamento e disposições para produzi-lo a seu tempo. E tudo isto já envolve a ideia compreendida nesse pensamento.

No tocante à ação de Deus sobre a vontade humana, há muitas considerações bastante difíceis, que seria longo acompanhar aqui. Não obstante, é isto o que se pode dizer em traços gerais: Deus, ao concorrer para nossas ações ordinárias, não faz mais que seguir as leis que estabeleceu, isto é, conserva e produz continuamente nosso modo de ser de maneira que nossos pensamentos nos venham espontânea ou livremente na ordem que traz consigo a noção de nossa substância individual, na qual se os poderia prever desde toda a eternidade. Ademais, em virtude do decreto que estabeleceu de que a vontade tenderia sempre ao bem aparente, expressando ou imitando a vontade de Deus a partir de certos pontos de vista particulares a respeito dos quais esse bem aparente tem sempre algo de verdadeiro, determina a nossa à escolha daquilo que lhe parece melhor, sem no entanto obrigá-la. Pois falando de um modo absoluto, está na indiferença — enquanto se a opõe à necessidade —, e pode obrar de outro modo inclusive suspender totalmente sua ação, pois um e outro partido são e permanecem possíveis. Depende, pois, da alma o precaver-se contra as surpresas das aparências mediante uma vontade firme de refletir, e de não obrar nem julgar em certas circunstâncias a não ser depois de haver bem deliberado maduramente. É certo, no entanto, e mesmo seguro desde toda a eternidade, que alguma alma não se servirá deste poder em tal circunstância. Mas quem o pode evitar? E pode queixar-se de alguém mais do que de si mesma? Pois todas essas queixas, depois do fato, são injustas, como o seriam antes do mesmo. Pois esta alma, um pouco antes de pecar, poderia queixar-se de Deus, como se este a determinasse ao pecado? Sendo as determinações de Deus nestas matérias coisas imprevisíveis, de onde sabe que está determinada a pecar, senão quando peca efetivamente? Trata-se só de não querer, e Deus não poderia pôr uma condição mais fácil e mais justa; assim todos os juízes, sem procurar as razões que dispuseram um homem a ter má vontade, detêm-se apenas a considerar que essa vontade é má. É porém seguro desde toda a eternidade que pecarei? Responde a ti mesmo: talvez não; e sem pensar no que não poderias conhecer e que não te pode dar nenhuma luz, obra segundo teu dever, que conheces. Mas, dirá alguém, por que este homem cometerá seguramente este pecado? A resposta é fácil: é que de outro modo não seria esse homem. Pois Deus vê desde sempre que haverá um certo Judas, cuja noção ou ideia que Deus tem dele contém essa ação futura livre. Permanece apenas esta questão: por que tal Judas, o traidor, que não é mais que possível na ideia de Deus, existe atualmente. Mas não se deve esperar resposta para esta questão neste mundo, a não ser dizer que, tendo Deus julgado bom que existisse, não obstante o pecado que previa, este mal tem que se compensar com acréscimos no universo, que Deus dele tirará um bem maior, e que, em suma, esta série das coisas em que está compreendida a existência desse pecador é a mais perfeita entre todos os demais modos possíveis. Explicar, porém, sempre a admirável economia desta escolha, não é isso possível enquanto somos viajantes neste mundo; é bastante o saber sem compreendê-lo. E é esta a ocasião de reconhecer, altitudinem divitiarum, a profundidade e o abismo da divina sabedoria, sem procurar um pormenor que envolva considerações infinitas.

(Discours de métaphysique, 28, 29 e 30.)

INDEPENDÊNCIA DA ALMA

Vê-se também que toda substância tem uma perfeita espontaneidade (que redunda em liberdade nas substâncias inteligentes), que tudo o que lhe ocorre é uma consequência de sua ideia ou de seu ser, e que nada a determina que não seja Deus somente. E por isto uma pessoa de espírito muito elevado, e venerada por sua santidade, costumava dizer que a alma deve pensar amiúde como se no mundo só houvesse Deus e ela. E nada faz compreender com mais vigor a imortalidade que esta independência e esta extensão da alma, que a põe absolutamente a coberto de todas as coisas exteriores, visto que só ela constitui todo seu mundo e se basta a si mesma com Deus: e é tão impossível que pereça sem aniquilação como é impossível que o mundo (do qual é uma expressão viva, perpétua) se destrua ele próprio; tampouco é possível que as mudanças dessa massa extensa que se chama nosso corpo afetem em alguma coisa à alma, nem que a disposição desse corpo destrua o que é indivisível.

(Discours de métaphysique, 32.)

A UNIÃO DA ALMA E DO CORPO

Vê-se também a explicação inesperada desse grande mistério da união da alma e do corpo, isto é, como ocorre que as paixões e as ações de um se acompanhem das ações e paixões, ou pelos fenômenos convenientes do outro. Pois não há meio de conceber que um influa sobre o outro, e não é razoável recorrer simplesmente à operação extraordinária da causa universal em uma coisa ordinária e particular. M as a verdadeira^ razão é esta: dissemos que tudo o que acontece à alma e a cada substância é uma consequência de sua noção; portanto, a ideia mesma ou essência da alma traz consigo o fato de que todas suas aparências ou percepções tenham que lhe surgir (sponte) de sua própria natureza, e justamente de modo que correspondam por si mesmos ao que ocorre em todo o universo, porém mais particular e mais perfeitamente ao que ocorre no corpo que lhe está afeito, porque a alma expressa o estado do universo, em certo sentido e durante algum tempo, segundo a relação dos demais corpos com o seu. O que mostra também como nosso corpo nos pertence sem, no entanto, estar unido a nossa essência. E creio que as pessoas que sabem meditar julgarão favoravelmente nossos princípios pelo fato mesmo de que poderão ver facilmente em que consiste a conexão que há entre a alma e o corpo, que parece inexplicável por qualquer outra via. Vê-se também que as percepções de nossos sentidos, inclusive quando são claras, têm que conter necessariamente algum sentimento confuso, pois como todos os corpos do universo simpatizam, o nosso recebe a impressão de todos os demais, e embora nossos sentidos se refiram a tudo, não é possível que nossa alma possa atender a tudo em particular; por isto nossos sentimentos confusos são o resultado de uma variedade de percepções, que é completamente infinita. E é algo parecido ao murmúrio confuso que ouvem os que se acercam à beira mar, que provém da reunião das repercussões das inúmeras ondas. Mas se de várias percepções (que não concordam para fazerem uma) não há nenhuma que sobressaia às outras, e produzem-se impressões igualmente fortes ou igualmente capazes de determinar a atenção da alma, esta só pode dar-se conta delas confusamente.

(Discours de métaphysique, 33.)

A IMORTALIDADE PESSOAL

A alma inteligente, que conhece o que é e pode expressar esse eu, que diz muito, não só permanece e subsiste metafisicamente, muito mais que as outras, como ademais permanece moralmente a mesma e constitui a mesma personagem. Pois quem a faz capaz de castigo e de recompensa é a recordação e o conhecimento desse eu. Igualmente, a imortalidade que se pede na moral e na religião não consiste só nessa subsistência perpétua que convém a todas as substâncias, pois sem a recordação do que se foi não teria nada de desejável. Suponhamos que alguém tenha que se converter de repente em rei da China, mas com a condição de esquecer o que foi, como se acabasse de nascer novamente; não é na prática, ou quanto aos efeitos de que alguém se pode dar conta, o mesmo que se tivesse de ser aniquilado e ser criado no mesmo instante em seu lugar um rei da China? O que esse alguém não tem nenhuma razão para desejar.

(Discours de métaphysique, 34.)

O SER ESPIRITUAL

Com efeito, os espíritos são as substâncias mais perfectíveis, e suas perfeições têm a particularidade de que se embaraçam entre si minimamente, pelo contrário, mais se ajudam, pois só os mais virtuosos poderão ser os amigos mais perfeitos: do que se segue manifestamente que Deus, que procura sempre a máxima perfeição em geral, terá o maior cuidado dos espíritos, e dar-lhes-á, não só em geral mas inclusive a cada um em particular, o máximo de perfeição que a harmonia universal possa permitir. Pode-se até dizer que Deus, enquanto é um espírito, é a origem das existências; de outro modo, se lhe faltasse a vontade para escolher o melhor, não haveria razão alguma para que um possível existisse preferentemente a outro. Assim, a qualidade que Deus tem de ser ele próprio espírito antecede a todas as demais considerações que pode ter a respeito das criaturas: só os espíritos estão feitos a sua imagem, e são como de sua raça ou filhos da casa, visto que só eles podem servi-lo livremente e obrar com conhecimento imitando a natureza divina: um só espírito vale por todo um mundo, visto que não só o expressa, mas também o conhece e nele se governa à maneira de Deus. De tal modo, que parece, embora toda substância expresse o universo inteiro, que as demais substâncias expressem mais o mundo que Deus, enquanto os espíritos expressam mais Deus que o mundo. E esta natureza tão nobre dos espíritos, que os aproxima à divindade quanto é possível às simples criaturas, faz com que Deus tire deles infinitamente mais glória que do resto dos entes ou, dizendo melhor, os demais entes só dão matéria aos espíritos para glorificá-lo. E por isto esta qualidade moral de Deus, que o faz senhor ou monarca dos espíritos, lhe concerne, por assim dizer, pessoalmente de um modo muito singular. Por isto se humaniza, tolera antropologias e entra em sociedade conosco, como um príncipe com seus súditos; e esta consideração lhe é tão cara, que o estado feliz e próspero de seu império, que consiste na máxima felicidade possível de seus habitantes, faz-se sua lei suprema. Pois a felicidade é para as pessoas o que a perfeição é para os entes. E se o primeiro princípio da existência do mundo físico é o direito de dar-lhe o máximo de perfeição que é possível, o primeiro desígnio do mundo moral ou da cidade de Deus, que é a parte mais nobre do universo, deve ser difundir nela o máximo de felicidade que seja possível. Não é, pois, de duvidar, que Deus haja ordenado tudo de sorte que os espíritos não só possam viver sempre, o que é infalível, como ademais conservem sempre sua qualidade moral, a fim de que sua cidade não perca nenhuma pessoa, como o mundo não perde nenhuma substância. E por conseguinte saberão sempre o que são, pois de outro modo não seriam susceptíveis de recompensa nem castigo, o que é não obstante essencial a uma república, mas sobretudo à mais perfeita, onde nada se poderia descuidar. Por último, como Deus é ao mesmo tempo o mais justo e o mais bondoso dos monarcas, e nada pede além da boa vontade, com tal que seja sincera e séria, seus súditos não poderiam desejar melhor condição, e para fazê-los perfeitamente felizes só deseja que o amem.

(Discours de métaphysique, 36.)

A MÔNADA HUMANA

Toda mônada com um corpo particular é uma substância viva. Assim, pois, não só há vida em tudo, associada aos membros e aos órgãos, como também há, entre as mônadas, infinitos graus e umas dominam mais ou menos sobre as outras. Mas quando a mônada possui órgãos tão acertados que por meio deles há destaque e distinção nas impressões que recebem e, por conseguinte, nas percepções que as representam — como, por exemplo, quando, mediante a figura dos humores dos olhos, concentram-se os raios luminosos e atuam com mais força — isso pode chegar até o sentimento; isto é, até uma percepção acompanhada de memória; quer dizer, uma percepção da qual perdura certo eco para deixar-se ouvir por vezes; e o vivente chama-se então animal, e sua mônada, alma. E quando esta alma se levanta até a razão, é então algo mais sublime e alinha-se entre os espíritos, como depois explicarei.

É certo que os animais às vezes estão no estado de simples viventes, e suas almas no estado de simples mônadas; e isto acontece quando suas percepções não são o suficiente distintas para poderem ser recordadas, como ocorre em um sono profundo sem sonhos ou num desmaio; mas as percepções que se tornaram inteiramente confusas devem desenvolver-se de novo nos animais, pelas razões que logo direi. Assim, pois, convém distinguir a percepção, que é o estado interno da mônada quando representa as coisas externas, e a apercepção, que é a consciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior; esta consciência não é dada a todas as almas, tampouco é dada sempre à mesma alma. E por não haver feito esta distinção, os cartesianos falharam, considerando nulas as percepções de que alguém não se apercebe, como o povo faz com os corpos insensíveis. Por isto mesmo acreditaram os cartesianos que unicamente os espíritos são mônadas e que os animais não têm alma nem há outros princípios de vida. E assim como foram de encontro à opinião comum dos homens ao negarem o sentimento aos animais, submeteram-se, pelo contrário, aos preconceitos do vulgo, ao confundirem um longo desmaio com a morte a rigor, na qual cessasse toda percepção; o que serviu de confirmação à opinião mal fundada da destruição de algumas almas e a crença má de certos supostos gênios livres que combatem a imortalidade da alma humana.

Há na percepção dos animais certa trama que arremeda a razão; funda-se porém apenas na memória dos fatos, e de nenhum modo no conhecimento das causas. Assim, o cão foge do pau com que foi batido, porque sua memória representa-lhe a dor que o pau lhe causou. E os homens, enquanto são empíricos, isto é, nas três quartas partes de suas ações, procedem como os animais; por exemplo, espera-se que o sol saia amanhã, porque é essa a reiterada experiência. Só um astrônomo o prevê por razão; e ainda esta previsão por fim falhará, quando cessar a causa do dia, que não é eterna. O verdadeiro razoamento depende, porém, das verdades necessárias ou eternas, como são as da lógica, dos números, da geometria, que constituem a conexão indubitável das ideias e das consequências infalíveis. Os animais nos quais não se advertem essas consequências chamam-se brutos; mas os que conhecem essas verdades necessárias são propriamente chamados animais racionais, e suas almas têm o nome de espíritos. Estas almas são capazes de atos reflexivos e podem considerar isso que chamamos o eu, substância, mônada, alma, espírito; em uma palavra, as coisas e as verdades imateriais. E por isso somos susceptíveis de ciência e de conhecimentos demonstrativos.

(Principes de la nature et de la grâce fondés en raison, 4 e 5).

A FELICIDADE

A felicidade suprema, ainda que acompanhada de visões beatíficas ou conhecimentos de Deus, nunca pode ser plena, porque sendo Deus infinito não pode ser conhecido inteiramente.

Assim, pois, nossa felicidade não consistirá nunca, e não deve consistir, em um gozo pleno, no qual nada fique por desejar deixando nosso espírito embrutecido, mas sim em um progresso perpétuo em direção a novos deleites e novas perfeições.

(Principes de la nature et de la grâce fondés en raison, 18.)

A ALMA RAZOÁVEL

O conhecimento das verdades eternas é o que nos distingue dos animais e nos faz possuidores da Razão e das ciências, elevando-nos até o conhecimento de nós mesmos e de Deus. E é isto o que em nós se chama Alma razoável ou Espírito.

Também por meio do conhecimento das verdades necessárias e suas abstrações nos elevamos até os atos reflexivos, que nos fazem pensar no que chamamos o eu e considerar que isto ou aquilo se acha em nós; e assim, ao pensar em nós mesmos, pensamos no Ser, na Substância, no simples e no composto, no imaterial e em Deus mesmo, concebendo que o que em nós é limitado, em Deus não tem limites. E os tais atos reflexivos nos dão os principais objetos de nossos razoamentos.

Entre outras diferenças que há entre as Almas ordinárias e os Espíritos, algumas das quais indiquei, há ainda esta: que as almas em geral são espelhos viventes ou imagens do universo das criaturas; os espíritos, porém, são além disso, imagens da Divindade mesma ou do Autor mesmo da Natureza; são capazes de conhecer o sistema do universo e imitar algo dele em certas demonstrações arquitetônicas, sendo cada espírito como uma pequena divindade em seu departamento.

(Monadologie, 29, 30 e 83.)