PREFÁCIO
A dívida que prometi ao santo bispo Castor no prefácio dos volumes em que tratei, com a ajuda do Senhor e na medida da minha modéstia, das instituições cenobíticas e dos remédios dos oito vícios principais, foi de algum modo satisfeita.
Cabe-me certamente a mim ver o juízo que ele e vós, em vossa equidade, fizestes sobre esta obra. Em assuntos tão profundos e sublimes, que, segundo penso, nunca foram antes tratados por algum escritor, terei eu publicado um trabalho digno do vosso conhecimento e do desejo de tantos santos irmãos?
O mesmo pontifica, em seu incomparável ardor pela santidade , me tinha então pedido que lhe escrevesse no mesmo estilo estas dez conferências dos maiores Pais , isto é, dos anacoretas que moravam no deserto de Scete. Sua imensa caridade não lhe permitia avaliar o peso que punha em meus ombros tão fracos.
Agora, porém, que ele nos deixou e partiu para o Cristo , é a vós, santo bispo Leôncio e venerável irmão Heládio, que julguei dever dedicá-las.
Um de vós, com efeito, unido a ele pelos laços da fraternidade, a dignidade do sacerdócio e, o que é mais o fervor do santo empenho, merece por direito a herança fraterna desta minha dívida. O outro procurou seguir o sublime modo de viver dos anacoretas, não, como alguns, por sua própria presunção, mas tomando, por sugestão do Espírito santo, o caminho legitimo da doutrina , quase antes mesmo de aprendê-la, pois preferiu se formar pelas próprias tradições dos solitários, e não por suas descobertas pessoais.
Agora que me encontro estabelecido num porto de silêncio, vejo abrir-se diante de mim um oceano ilimitado, se ouso transmitir à memória literária algo do sistema de vida e dos ensinamentos de tão grandes varões.
Quanto mais a vida solitária ganha em grandeza e sublimidade sobre os mosteiros cenobiticos, e a contemplação de Deus , à qual aqueles inestimáveis varões estão sempre aplicados, sobre a vida ativa praticada em comunidades, tanto mais longínqua será também a navegação a que se lançará, com perigo, a minha frágil barca.
Vosso dever é ajudar com vossas preces piedosas os meus esforços, a fim de que tão santa matéria, a ser exposta pela minha palavra inexperiente, embora fiel, não sofra perigo por minha culpa , ou que, ao contrário, a minha rusticidade não seja engolida pelos abismos do mesmo tema.
Passemos, portanto, do lado exterior e visível da vida dos monges, que tratamos nos primeiros livros, ao invisível modo de viver do homem interior. E o nosso discurso se eleve do modo da oração canônica ao dessa oração ininterrupta que constitui um preceito do Apóstolo.
Sé alguém já mereceu, pela leitura da obra anterior , o nome daquele Jacó espiritual que suplantou os vícios carnais, agora então, acolhendo não os meus, mas os ensinamentos dos Pais, passe, pela contemplação da pureza divina, ao mérito e até mesmo, se assim posso dizer, à dignidade de Israel , e seja igualmente instruído sobre tudo que deve observar nesse cume da perfeição.
Possam, portanto, as vossas orações obter daquele que nos julgou dignos de vê-los, a graça de ser seus discípulos e entrar em comunhão com a sua vida. Que ele nos conceda uma lembrança perfeita das suas tradições e uma palavra fácil para exprimi-las.
Se isso pedimos, é para que possamos explicar a sua doutrina de modo tão santo e integral como deles recebemos, de sorte que nos seja dado mostrá-los de certo modo encarnados nos seus ensinamentos e - o que é mais importante - falando-vos na língua latina.
Antes de tudo, porém, queremos prevenir o leitor destas Conferências e dos livros anteriores, para que fique bem avisado do seguinte.
Se, porventura, ali encontrar coisas que ele ache impossíveis ou duras, segundo a natureza do seu estado e propósito ou em relação ao modo de vida comum, não as meça conforme a sua própria fraqueza , mas segundo a dignidade e a perfeição dos que falam. Pense, antes, na profissão e no propósito desses varões. Por ele, mortos à vida segundo o mundo, não estão presos a nenhum laço com parentes carnais nem com assuntos do século.
Em seguida, deve também considerar a natureza dos lugares em que moram. É uma solidão vastíssima, onde vivem separados do convívio de todos os mortais , possuindo, por isso mesmo a iluminação das suas faculdades , com que contemplam e podem dizer coisas que parecem, talvez, impossíveis a quem não as experimenta nem conhece, em razão da condição e da mediocridade do seu modo de viver.
Se, contudo, alguém quiser proferir um julgamento verdadeiro sobre tais coisas, e deseja experimentar a sua possibilidade, corra antes a assumir, com igual aplicação e sistema de vida, o propósito deles. Concluirá, então, que tudo aquilo que lhes parecia acima das forças do homem, é não só possível, mas até mesmo de extrema suavidade.
Mas já é hora de correr às suas conferências e ensinamento.