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Ensaios Filosóficos. Homenagem a Carneiro Leão

Harada (HCL) – Eckhart - Sermão 1

Importa não ser

terça-feira 11 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

      

Schuback  , Marcia Sá Cavalcante. Ensaios de Filosofia. Homenagem a Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1999.

Importa não ser

      

Em que consiste esse querer, saber e ter o nada   no modo do nada? Ou antes, em que consiste esse nada que nadifica o querer, saber e ter, a modo do nada todo próprio? A essa pergunta Mestre Eckhart   nos convida a entrarmos mais profundamente no seu sermão 1, comentando o texto de Mt   21,12 "Intravit Jesus   in templum et coepit eicere vendentes et ementes". Segundo Eckhart, o templo   onde Jesus entrou é a alma   humana. Esse templo, a alma humana Deus   a formou tão igual a ele e a criou como diz o Senhor nas Escrituras  : "Façamos o Homem   à nossa imagem e semelhança  " (Gn 1,26). Entre as criaturas, não há nenhuma que seja tão igual a ele, a não ser   unicamente a alma humana. E Deus quer esse templo vazio  . A tal ponto que ali não haja a não ser unicamente ele mesmo. Pois lhe agrada tanto ali estar à vontade, ser ele mesmo, só ele absolutamente. Isto significa que Deus, na sua ab-soluta presença, na plenitude   do estar à vontade na sua identidade  , coincide com a facticidade de a alma humana ser ela mesma, sem mistura, sem acréscimos, isto é, vazia de si, vazia "em si". O que há, porém, de diferença   entre Deus e a alma, se esse nada nem sequer pode ser chamado de vazio, pois vazio é sempre o dentro oco de um algo? Há ainda um sentido falar de igualdade e diferença, se nada é tão nada que não constitui um término de relação para com Deus? Aqui o nada é tão nada que nem sequer pode surgir   a suspeita de panteísmo, pois panteísmo seria, se atribuíssemos à alma (— e também a Deus! —) ser ela um algo mais do que nada. E que nada aqui deve ser nada mesmo, a tal ponto de só haver Deus, o próprio ser, o ser em si e o ser a se, ab-soluto, Tudo.

O aprofundamento dessa questão se dá, quando Mestre Eckhart tenta explicar quem são os que estavam no templo, ocupando indevidamente a casa   do Senhor. Os que foram expulsos como vendilhões são os cristãos que evitam cometer pecados grosseiros e são de boa vontade, digamos gente de bem, cristãos que fazem suas boas obras para a honra   de Deus, como p. ex. jejuns, vigílias, orações etc. Mas o fazem para que o Senhor lhes dê ou faça em troca o que eles gostam. Estes são negociantes e são expulsos do templo, porque no templo de Deus não pode haver negócios. Pois tudo receberam de Deus, a tal ponto que, façam o que fizer, o próprio fazer, a própria possibilidade de fazer, querer e buscar, eles os receberam gratuitamente de Deus. Assim, Deus não lhes deve nada. Aqui, o modo negociante não coaduna com a limpidez do templo, isto é, da alma humana no seu estado   nascivo e original. E mesmo que, com toda essa boa vontade, o Homem, em todas as suas boas obras, busque algo que quer e gostaria de dar a Deus, também ele não passa de negociante. E, assim, Eckhart nos exorta: "Queres livrar-te totalmente do negócio, de tal modo que Deus te deixe nesse templo, então deves fazer tudo que podes em todas as tuas obras, limpidamente, apenas para o louvor e permanecer tão desprendido disso, como o nada é desprendido. Ele não está nem aqui nem ali. Tu em absoluto não deves cobiçar nada por isso. Se tu assim atuas, então as tuas obras são espirituais e divinos, e os negociantes são enxotados para sempre do templo e Deus, somente ele, ali estará, pois este Homem tem somente Deus em mente  ".

Eckhart fala também dos que não foram expulsos do templo, mas que receberam de Jesus a amável ordem   de recolherem as suas mercadorias do templo. Estes são os vendedores de pombas. Segundo Eckhart, Jesus lhes fala bondosamente: "Retirai isto daqui!", como se quisesse dizer: "Isto quiçá não é mau, traz no entanto impedimentos para a pura verdade!" Quem são essa gente? São a boa gente, os que fazem suas obras limpidamente somente por causa   de Deus, nada buscando como recompensa   (o que é de Deus) e, no entanto, o fazem em ligação ao próprio eu, a tempo, a número  , a antes e depois. Nessas coisas eles são impedidos de alcançar a suprema verdade, a saber: que devem ser livres e vazios como foi livre e vazio o nosso Senhor Jesus Cristo. Ele que, a cada momento, sem cessar e sem tempo se recebe novo do seu Pai   celeste e no mesmo in-stante, sem interrupção, renasce com louvor cheio de gratidão  , para dentro da sublimidade do Pai, na igual dignidade. Inteiramente assim, deveria ex-sistir o Homem que se torna receptivo à suprema verdade e gostaria de viver   sem antes e sem depois e sem impedimento  , através de todas as obras e de todas as configurações, das quais ele se tornou cada vez ciente e vazio e recebendo livremente o dom divino nesse in-stante como louvor pleno   de gratidão, renascendo em nosso Senhor Jesus Cristo.

Deixar ser o nada de nós significa, portanto, tornar-se inteira e radicalmente pura recepção. Esse ser puro nada de recepção é chamado por Eckhart de ser "livre de todos os impedimentos, isto e, da eu-ligação e nesciência". Temos assim a pura recepção obediente que sabe ao "sabor   do nada".

Como é, porém, esse nada que somos nós mesmos na nossa propriedade a mais própria, a saber, sem eu-ligação, inteiramente cientes de nós mesmos? Como é, pois, o Homem do nada? Responde Eckhart: ele "esplende tão belo e brilha tão puro e claro por sobre tudo e através de tudo que Deus criou, que ninguém pode lhe ir de encontro com igual brilho, a não ser unicamente o Deus Incriado". E radicaliza: "A esse templo, ninguém é igual a não ser somente o Deus Incriado "Tudo que é debaixo dos anjos  , de modo algum iguala a esse templo. Mesmo os supremos anjos se assemelham a esse templo da alma nobre só até certo grau, mas não completamente. Que eles se assemelhem numa certa medida à alma, isto vale para o conhecimento e o amor. A eles, porém, é colocada uma consumação: por sobre si para além não podem ir. A alma, no entanto, pode sim ir por sobre si para além, Se a alma — e quiçá a alma de um homem que vivesse ainda na temporalidade — estivesse à mesma altura do anjo supremo, este homem poderia ainda sempre mais no seu poder livre alcançar por sobre o anjo para além, mais alto, incomensuravelmente em cada in-stante, novo e sem número, isto é, sem modo, e por sobre o modo dos anjos e de toda a razão criada. Somente Deus é livre e incriado, e daí, ele somente é igual à alma, segundo a liberdade, não, porém, em vista da não creaturidade, pois ela é criada. Se a alma vem à luz sem mistura, então ela repercute para dentro do seu nada no nada tão longe do seu algo criado que ela pela própria força não pode por nada voltar ao seu algo criado. E Deus se coloca com a sua incriabilidade debaixo do nada dela e mantém a alma no seu algo".


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