O fazer do começo determina-se, metafisicamente, como criação. O próprio desta determinação é explicar a passagem do nada para alguma coisa, do não-ser para ser através de uma mediação, de um “criador”, de um sujeito da criação. Sendo a criação o sentido judaico -cristão de existência, onde tudo o que é se apreende como o que é criado, tudo o que é pode apenas vir a ser o que é pela determinação de seu criador. A determinação significa, aqui, mais propriamente, vontade. Sendo o criado obra da vontade do criador esta constitui, então, o fundamento último e inconcussum de tudo o que é. Todavia, sendo a vontade do criador o fundamento último de todas as coisas como então explicar a diferença e a identidade entre criador e criado, entre vontade e existência? Como é possível que o mundo em sendo criação de deus lhe seja tão diverso? Se deus criador é apreendido como perfeição, ou seja, o que já se realizou inteiramente, por isso, não submetido ao tempo, e o mundo como imperfeição radical, ou seja, que jamais se poderá completar, como é possível que a perfeição “crie” a imperfeição? Como é possível que o atemporal “crie” o tempo? Este é o leito de Procrusto da tradição metafísica, que está sempre a cortar os pés longos e a esticar os braços curtos de toda existência para caber no leito do conceito de criação. Este conceito, porém, só implica contradição caso nele se pressuponha um sentido de igualdade na relação de identidade inerente à criação. Entendida como igualdade, a criação sempre conduzirá à aporia de ou ter de se admitir a essência do mundo e das coisas como atemporal ou a essência de deus criador como temporal. A relação criadora, originária, pode apenas “resolver” a sua aporia de princípio mediante uma discussão radical de seu fundamento, que é na verdade discussão do próprio sentido de fundamento. Esta discussão, por sua vez, pode apenas se realizar, partindo-se de sua base ontológica. A base ontológica do fundamento é, para Schelling , a experiência de ser como devir. O princípio de identidade adquire, nesta experiência, seu horizonte de verdade enquanto co-pertinência de ser e não-ser. Isso significa, em última instância, que a criação é, essencialmente, a identidade de ser em sua diferença, a din âmica de ser em não sendo, em suma, a simultaneidade originária. A simultaneidade originária fala, como já mencionamos, de uma duração criadora em que o começo e o começado “fazem” a si mesmos nesta relação. Isso significa, portanto, nos termos da tradição, que, enquanto criador, deus “faz” a si mesmo em tudo o que faz, ou seja, que deus é, ele mesmo, devir. O devir de deus implica uma diferença em deus. Esta diferença vai se exprimir, nos termos de Schelling, como a diferença entre deus e a sua divindade, termos que remontam à mística alemã de Mestre Eckhart e Jakob Böhme. Com esta diferença, Schelling vai entreabrir, no interior da própria metafísica da criação, a possibilidade de uma apreensão de deus não mais como o princípio inalienável do entendimento (deus filosófico), mas em si mesmo, na direção de seu princípio (o sagrado ). O fazer-se de deus exprime a sua transcendência, o seu “para além”. Deus se faz à medida que se expande, em que se potencia. A expansão de deus, o modo de concreção de sua divindade, é o mundo, a totalidade de tudo o que é, e, portanto, a sua própria retração. O não-ser deus que determina o mundo como mundo é, pois, o vir a ser de sua divindade, na dinâmica originária de mostrar-se na própria retração, de ser em não sendo. O não-ser de deus que é, simultaneamente, o ser de sua divindade explicita, em deus, um “ser-junto-a si mesmo” pelo qual se apreende que “antes” do mundo não há deus no sentido de um deus meramente efetivador de um projeto de criação. Antes do mundo é também antes de deus e, como tal, deus em seu passado ou possibilidade de devir, deus em sua providência. A precedência de deus relativamente ao mundo, a precedência do começo relativamente ao que nele tem começo, pronuncia apenas uma apreensão abstrata de deus e do mundo como substância. Em seu “ser-junto-a si mesmo”, ou seja, em seu ser em não sendo, em seu mostrar-se na retração de si mesmo, deus explicita em si mesmo uma natureza. A natureza de deus é, neste sentido, dinâmica de revelação. O sentido de revelação recebe, nesta dimensão, a sua base ontológica, sempre obscura ao longo da tradição. Pois à medida que se apreende deus como substância, como o que já se perfez inteiramente, a sua revelação só se deixa explicitar no âmbito do panteísmo ou como imanência, ou como concurso ou ainda como emanação . Segundo Schelling, o limite do panteísmo é a suposição de um deus substancial (esta é a base de sua crítica a Spinoza e Leibniz ) a partir da qual a relação de identidade, implícita à criação, é sempre apreendida como relação de igualdade e o “ser-em” deus de tudo o que é como mera analogia e comparação. No triângulo de substancialidade, igualdade e analogia, a relação entre deus e mundo jamais pode alcançar o sentido originário de revelação. Pois revelação implica uma abertura essencial [1]. Uma abertura essencial diz, por sua vez, a simultaneidade de um fechamento e da passagem do fechado para o aberto, indicando, assim, um horizonte de conquista por definição. Nos termos da palavra latina revelatio esta abertura essencial exprime-se como a copertinência com um velamento, com um retraimento. Mostrar-se em retraindo-se é o modo próprio de toda abertura, enquanto estrutura de conquista. Com esta determinação da “natureza” de deus, Schelling faz aparecer em deus a sua própria conquista, o seu próprio devir. Enquanto revelação, o devir de deus é o próprio mundo na totalidade de tudo o que é. Ao se apreender o sentido de deus como o seu próprio devir, Schelling redimensiona a acepção essencial de existência. Pois sendo o próprio devir no mundo, o que significa a existência de deus? A existência de deus não pode ser mais compreendida como existência quiditativa, como o que é simplesmente dado. O sentido de existência já se anuncia na própria palavra, que diz — “insistência para fora”, ou seja, revelação. Não podendo definir-se quiditativamente, a existência de deus diz simplesmente “que” deus existe e não “o que” define a existência de deus [2]. Como revelação, a existência libera-se de toda necessidade de uma “prova ontológica” à medida que faz aparecer que todo conteúdo possível do sentido de existência já pressupõe sempre o fato da existência. Na apreensão de deus como o seu próprio devir, a existência apresenta-se como o fato de sua revelação. Pois nenhum conteúdo possível de seu sentido de existência é capaz de preencher o seu devir. O fato da existência revela, assim, a base ontológica do devir.
A partir deste redimensionamento da existência como revelação, podem-se compreender as consequências da afirmação de Schelling de que a interrogação sobre o sentido de ser pronunciada nas palavras de Leibniz — “por que existe alguma coisa e não antes o nada ?” acontece no encontro com a indeterminação radical do homem . Pois o encontro com a indeterminação radical do homem é o encontro exemplar do homem com o fato da existência. Se o fato da existência é, em si mesmo, o fato da revelação de deus, pode-se, então, compreender por que este encontro conduz ao sentido da totalidade. Schelling diz, numa outra passagem, que: “À questão... ‘por que não há o nada, por que há alguma coisa’ a resposta integralmente válida não é alguma coisa, mas somente a totalidade ou deus” [3].