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Giacóia (2021:29-32) – afetos e sua terapia

terça-feira 27 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Affectus é o participio passado do verbo afficêre — que significa impressionar, produzir uma impressão, uma paixão (πατός), afetar. Vincula-se, assim, ao domínio semântico de αίσθηση — αισθητική, designando a sensibilidade, a sensação, a capacidade de sofrer afecções. Essa última é a acepção empregada por Kant   na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura. [...]

Mas o que se deve compreender, propriamente, por afeto? Em geral, o termo designa sentimento, sensação, carga emocional percebida como ligada a uma representação ou vivência; por exemplo, ser tomado de admiração, espanto, entusiasmo, temor perante algo ou alguém. Destaco, em particular, um matiz jurídico particularmente relevante, pelo qual afeto significa ligação, adstrição, estar vinculado a... ou gravado por.... Como no caso de ‘afeto a uma autoridade’, a um cargo, status ou a uma condição; p. ex.: patrimônio ou herança afetados por ônus, uma hipoteca. Psicologicamente, afeto implica, pois, um quantum de energia psíquica, de natureza emocional, adstrita a uma determinada representação.

Mas o que são os afetos para Nietzsche  . Relativamente a eles, o filósofo considera, por vezes, “simplesmente ‘inclinações e aversões’, ‘pró ou contra’ ou ‘favorável ou seu contrário’. No fundo, parece que todos os afetos são inclinações ou aversões de alguma espécie. Mas sua gama é extensa. Só em Para a Genealogia da Moral e Para Além de Bem e Mal ele emprega explicitamente o termo afeto para: medo, amor, ódio, esperança, inveja, vingança, luxúria, cobiça, irascibilidade, exuberância, calma, autossatisfação, auto-humilhação, a autocrucificação, luxúria, ganância, desconfiança, malícia, crueldade, desprezo, desespero, triunfo, sensação de olhar de cima para baixo, sentimento de um olhar superior em relação aos outros, o desejo de justificar-se aos olhos dos outros, exigência de respeito, sentimentos de preguiça, sentimentos de um comando, remorso por más ações. Afetos são, em última instância, maneiras pelas quais nós sentimos” [1]. Maneiras de sentir, induzindo ou acompanhando formas de pensar, os afetos brotam no limiar entre o psíquico e o somático, daí sua posição estratégica no pensamento de Nietzsche.

Temos, então, também em Nietzsche uma therapia mentis (Θεραπεία: cura, curar), uma economia dos afetos, que é um resgate da arte dietética (diaetetfcus, gr. διαιτητικός), no sentido em que a antiga medicina grega compreendia a dietoterapia: um conjunto das prescrições para um modo de vida e alimentação (atividade física, repouso, etc.) aptas a manter o estado de saúde e o bom metabolismo [30] corporal e espiritual, incluindo, pois, aspectos somáticos, intelectuais, ambientais, ecológicos e sociais. É o que se pode constatar pela leitura do corpus hipocrático.

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Ora, este problema forma o núcleo e o cerne da tarefa que Nietzsche prescreveu para sua filosofia: a transvaloração de todos os valores. Não se pode negar a estreita vinculação dessa tarefa com a economia e o regime das forças afetivas, de maneira que uma efetiva transvaloração dos valores superiores da cultura depende, em boa medida, da capacidade do tratamento e do alcance civilizatório de uma terapia dos afetos.

Essa tarefa demanda o núcleo subversivo da filosofia de Nietzsche, a transvaloração dos valores, pois dela depende a correção e a modificação dos modos de sentir, pensar e agir, que está na base da libertação do espírito. Por isso, desde muito cedo, encontra-se em ação na obra de Nietzsche uma modalidade de filosofia experimental, em que as máximas tensões do pensamento são ainda intensificadas e mobilizadas como recursos estratégicos na tarefa ética de formação e transformação de Si, que é também cultivo de espíritos livres. Trata-se, para Nietzsche, de um processo que mobiliza as vivências mais profundas, séries de experiências de pensamento, uma delicada arte de recriação, amadurecida penosamente, nos limites da oposição acaso e necessidade, que fornece o cenário ideal para um experimento de problematização da dialética entre determinismo e liberdade.


Ver online : Oswaldo Giacóia Jr.


GIACÓIA Jr., Oswaldo. Ressentimento e Vontade. Para uma Fisio-Psicologia do Ressentimento em Nietzsche. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021


[1Janaway, C. Autonomy, affect, and the Self in Nietzsche’s Project of Genealogy. In: Gemes, K. May, S. Nietzsche on Freedom and Autonomy. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 52.