Marcia Sá Cavalcante
Consideramos como ponto de partida para ler os medievais a necessidade de se admitir a questão de deus como a grande questão medieval. Por "questão de deus" não se deve entender um questionamento acerca da existência de deus, ou seja, um questionamento no modo moderno da dúvida. A questão de deus que caracteriza o medieval é, fundamentalmente, um querer bem a deus. Um querer bem à condição de tudo o que é. Para o medieval, deus é condição de tudo, é toda condição. Para o medieval, deus está em todo lugar porque deus é todo o lugar, é onipresença.
Como compreender um lugar que é, em si mesmo , todos os outros lugares? O que é, para a religiosidade medieval, o lugar, o espaço? Para responder a essa pergunta, em consonância com a experiência medieval, é preciso partir da questão de deus, da apreensão de um deus que está sempre em toda parte.
Para o espírito medieval, o lugar de deus é o lugar de todos os lugares. Essa expressão indica, primeiramente, que esse lugar não anula a possibilidade de outros lugares. Não se trata de um lugar único, de uma única dimensão, mas de um lugar que acolhe os outros lugares e que se coloca em outros lugares. Na experiência de deus como lugar de todos os lugares, mantém-se a diferença entre deus e todos os lugares possíveis. Só que essa diferença mantém-se dentro de um mesmo lugar, dentro de deus. Para compreender esse lugar de todos os lugares é preciso imaginar um lugar que contenha e permita dentro de si outros lugares. A iconografia medieval está repleta de imagens de círculos concêntricos — um lugar que contém, dentro de si, vários outros lugares. A diferença contida no mesmo.
Se a imagem dos círculos concêntricos pode auxiliar a compreender esse lugar de todos os lugares, deve-se então precisar o próprio dessa concentricidade. A imagem dos círculos concêntricos é imagem de um lugar din âmico, de um lugar que se aprofunda, que de algum modo continua. Pensando-se na imagem concêntrica de uma pedra jogada no lago ou na percussão de um som , é possível perceber que concentricidade indica um dinamismo e não um lugar parado, prefixado, preciso. É a imagem de um lugar que muda de lugar, de um lugar impreciso. A imagem de um lugar que não tem bem um "onde", um onde começa e um onde termina.
A primeira característica do lugar de todos os lugares é justamente não ter um onde começa e um onde termina. É ser um lugar sem onde. deus não tem começo e não tem fim, não obstante dê começo e ponha fim a tudo o que é e existe. Essa afirmação é inteiramente medieval. Ao apreender deus como o que em si não tem começo e nem fim e sendo deus o lugar de todos os lugares, o lugar de deus não pode se confundir com nenhum "onde". Quando dizemos "onde", dizemos uma determinação, uma posição passível de ser fixada, encontrada, quantificada. O próprio do "onde" é o endereço, o lugar de uma permanência. Nossa representação moderna de lugar está inteiramente plantada na determinação de um "onde", de um sistema de referência espacial capaz de medir, quantificar, determinar, com precisão e objetividade, os vários "ondes" ou posições dos objetos. Esse onde meramente posicional pode, assim, ser encontrado por qualquer um através de um mapa, de um plano, de uma indicação, independentemente de uma experiência. O que hoje chamamos de espaço define-se como um sistema de referência convencional e arbitrário, essencialmente independente do corpo que o ocupa. Para o medieval, no entanto, nada há de mais estranho do que a ideia de um espaço abstrato a partir do qual se marcam e definem os "ondes" das coisas.
O que é deus e o que é o lugar de deus? Guardando a motivação do Eclesiástico, Mestre Eckhart começa enunciando três possíveis respostas à pergunta quem é deus. A primeira diz que "deus é algo diante do qual todas as coisas mutáveis e temporais nada são e tudo o que possui ser é diante dele pequeno" [1]. A segunda diz que "deus é algo que necessariamente está além do ser , que em si mesmo de nada carece mas do que todas as coisas carecem". A terceira diz que "deus é uma razão que vive aí no conhecimento único de si mesmo". Mestre Eckhart escolhe a segunda resposta , pois vê nela maior propriedade. Por quê? A grande diferença entre as três respostas reside no significado dos três advérbios de lugar, empregados em cada uma delas. A primeira resposta define deus a partir do "diante de", a segunda a partir do "além" [2] e a terceira a partir do "aí". A diferença reside, portanto, nas circunstâncias que cercam a significação verbal de deus. Mestre Eckhart deixa de lado o modo da contraposição implícito no "diante de" e o modo da unidade imediata expresso no "aí", e concentra sua interpretação na segunda resposta, que dimensiona deus a partir de um (ser) além (acima) do ser.
Como deus é além, acima do ser? Mestre Eckhart diz que esse acima não é o mesmo que uma esfera superior, independente do ser, como água e azeite. A explicação de Mestre Eckhart é de extrema simplicidade, deus é além, acima do ser, porque está em todas as criaturas de modo uno, resguardando a sua unidade. Pois o "que é uno em muitas coisas, deve necessariamente ser além, acima das coisas". O lugar de deus, a sua unidade, está em todos os lugares, mas igualmente para além de toda determinação espacial. Só assim deus pode ser o lugar de todos os lugares.
A simplicidade dessa explicação resume o que significa, para o espírito religioso medieval, o lugar de deus. O lugar de deus é em todas as criaturas, é em tudo o que é e não longe ou separado delas. Toda determinação do lugar de deus como lugar "exterior" é inteiramente contrária ao espírito medieval. Aqui não há lugar "fora" de deus. A diferença entre deus e as criaturas, entre transcendência e imanência é, estranhamente, uma diferença em deus. A imanência encontra-se dentro da transcendência. Isso justifica que Mestre Eckhart estabeleça a estranha sinonímia entre "ser em" e "ser acima ou além de". Estranha porque, de imediato, é difícil entender como um lugar que é dentro pode também ser acima. Para entender, no entanto, por que, sendo em todas as criaturas, deus é e está acima do ser, é preciso aprofundar o sentido desse "ser em", que constitui o lugar de deus. Mestre Eckhart explica o próprio desse "ser em", que constitui o lugar de deus, não como uma coisa que está dentro da outra, como uma cadeira está dentro de uma sala. Ele fala de um "ser uno em" muitas coisas. O sentido espacial ganha, na verdade, uma outra luz uma vez que não se trata de um ser qualquer, de uma coisa qualquer, mas do ser-uno. Esse ser-uno está e é acima e além de todo ser, de toda coisa. A diferença primordial encontra-se, portanto, dentro do sentido de ser: ser como coisa, ser como o existente-aí, por oposição ao ser-uno de deus em todas as coisas. Assim, o ser em, que define o lugar de deus, não se deixa apreender como o ser-em das coisas no espaço, onde o "dentro" significa apenas relação proporcional entre dimensões extensivas, ou seja, entre coisas-objetos unicamente definidas a partir de seus tamanhos. Quando dizemos, comumente, que uma coisa está dentro de outra, não nos referimos a nenhum modo de ser e estar, a nenhum caráter vivo das coisas, mas aludimos em primeira instância a um mero estar-aí das coisas [3]. Dizemos que a cadeira está no cômodo, que o peixe está no aquário e, dessa forma, indicamos que duas coisas, que aí estão simplesmente, encontram-se numa relação espacial, estando uma dentro da outra.
Mas o lugar de deus não é o lugar de uma coisa. Não sendo "coisa", não sendo o que simplesmente está aí, o lugar de deus não pode ser compreendido com base na medida quantificável das coisas-objetos. Isso pode, de início, explicar por que, para o entendimento medieval, o espaço define-se, essencialmente, como lugar. É o lugar que fundamenta o espaço e não vice-versa. Como então definir a ideia medieval de lugar? A ideia medieval de lugar é uma ideia de lugar como experiência. O lugar define-se, fundamentalmente, como uma dinâmica de modos , como estrutura de modalidade. E, com isso, o lugar se apresenta como modo e circunstância de ser. Se, na gramática, o termo que exprime a circunstância da significação verbal é o advérbio, então podemos dizer que, para o medieval, o lugar é o advérbio de ser. Nesse sentido é que, para indicar o lugar de deus como o lugar de todos os lugares, Mestre Eckhart fala no ser-uno de deus, no seu ser-inteiramente, ser-indivisamente, ser-integralmente. E é a partir dessa significação adverbial, de modo e circunstância dos verbos da existência que se baseia a sua caracterização da essência do lugar [4]. Quando o lugar se define como circunstância, como a estância circundante de ser, os vários "lá", "aí" são avaliados a partir do modo em que a existência se realiza e movimenta numa integração de suas ocupações e motivações. "Lá", "cá", "acima", "abaixo" não são ondes, mas movimentos, tendências e, por isso, índices de lugares-amplitudes, de regiões. Em oposição aos advérbios de lugar, o lugar adverbial significa a totalidade integradora das várias estâncias de um movimento , de um verbo.
Podemos perceber que, para a religiosidade medieval, o espaço é concebido a partir do lugar. O lugar é, porém, experienciado a partir de um sentido de ser profundamente distinto do mero estar-aí. O sentido de ser é o de existência circunstanciada, de existência em seus modos de existir, sempre indicando em si direções e sentidos do ser-uno de deus. O sentido de ser é, assim, o de sinal, indicação ou "livro" do ser-uno de deus. O lugar é, em si, um lugar-apreensão. O lugar não se reduz, portanto, a um onde demarcado segundo um sistema arbitrário de referências, mas um localizar-se no meio-elemento da totalidade. Ao lugar pertence toda a circunstância e o modo de ser, sendo portanto, em seu fundamento de compreensão, um advérbio junto ao verbo de deus, ao seu ser inteiramente em todas as coisas. O lugar mostra-se, assim, como um pertencimento dinâmico, um lugar em constante movimentação. Só que numa movimentação "interior", ou seja, sempre dentro do meio-elemento de deus. Lugar é um quase-lugar, nunca rigidamente fixado, mesmo que concentrado num ponto, num mosteiro, num castelo, num burgo. Pois no lugar o que acontece é um dar novos lugares ao mesmo. O lugar é, assim, uma atividade de localizar-se na totalidade inteira e infinita de deus. Por isso, o fundamento da experiência medieval do lugar é, inconfundivelmente, o tempo. Trata-se de um acontecimento dinâmico in animo. E o quase lugar da alma é o tempo. O que nos cabe agora é aprofundar a experiência medieval do tempo. Para tanto, cabe uma leitura reflexiva do décimo primeiro livro das Confissões de Santo Agostinho , o livro sobre o tempo, que até hoje continua sendo a principal referência da reflexão ocidental acerca da essência do tempo.