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EVANGELHO DE JESUS

Crucificação (Mt 27,33-44; Mc 15,22-32; Lc 23,27-43)

quarta-feira 17 de agosto de 2022, por Cardoso de Castro

      

A Crucificação é a morte do "eu"  ; é preciso que o "eu" seja crucificado para evitar infligir este suplício à Presença real. [François Chenique  , A SARÇA ARDENTE]


EVANGELHO DE JESUS  : Mt 27:33-44; Mc 15:22-32; Lc 23:27-43
      

Andre Allard

O Cristo   salvador   está na cruz e a cruz é a Árvore da Vida, a coluna central da árvore sefirótica que vai de Kether   (a coroa) a Malkuth   (o reino), a qual é a Shekinah, a Presença real de Deus   aqui em baixo. E, assim como a coluna central da árvore sefirótica se encontra a coluna da Clemência e a coluna do Rigor  , assim também a cruz de Cristo está plantada entre duas outras cruzes: uma à direita do Cristo, portando o bom ladrão que beneficiará da Misericórdia divina porque se voltará para o Cristo, o outro, à esquerda, portando o mau ladrão que o peso do Rigor esmagará eternamente porque se desviou do Cristo. Somos todos ladrões ou, melhor, «servidores inúteis», como diz Lucas  ; mas a Misericórdia divina suprindo a nossa fraqueza  , desde que nos voltemos para Deus e seu Cristo e que cumpramos em nós a vontade do Senhor. [L’ILLUMINATION DU COEUR]

Roberto Pla

Não pode surpreender a ninguém que as três cruzes levantadas no Gólgota para Jesus e os dois   ladrões foram para os evangelistas um símbolo dos três terços psíquicos do homem   carnal crucificado, com a mesma disposição   triangular com que aparecem no presépio o “pequenino  ”, o boi   e o asno (vide Boi e Asno). Como refere Lucas, os que caminhavam com Jesus até o Calvário: “Levavam outros dois malfeitores para executá-los com ele”. Destes dois malfeitores, a um deles, o chamado Dimas embora não nomeado pelos evangelistas canônicos, o corresponde simbolizar ao “bom ladrão”, tão resgatável para a vida eterna como os conteúdos psíquicos restantes em ruah. A ele é a quem o faz Jesus a grande promessa, desde a cruz, de levá-lo aquele mesmo dia com ele ao Paraíso. O outro crucificado, o situado à esquerda, é um salteador irremediável. Ambos malfeitores, o ladrão à direita e o salteador à esquerda de Cristo, na mesma posição que na Natividade o boi (fecundo) e o asno (irremissível) à direita e à esquerda do pequenino, são figuras de todos os malfeitores que se achegam ao redil antes que o Bom Pastor, com o propósito de roubar-lhe as ovelhas (vide Pastor e Ovelhas).

Mas o verdadeiro protagonista do Calvário, Jesus, está no alto do monte. Seu corpo é visível (manifesto  ). No momento de morrer   “entrega seu espírito” (pneuma  ), ou melhor, “exala seu espírito” (o que recorda nesamah   = alento, respiração). Espírito? Estas locuções não encaixam dentro da composição binária do homem — corpo e alma   — que a psicologia cristã defende desde o tempo de Irineu de Lião. Tampouco é assinalável à configuração ternária paulina para o homem completo: corpo, alma e espírito, porque neste puro conceito cristão da igreja   primitiva o espírito é o Ser  , o Si mesmo   e em tal caso, a locução evangélica que comentamos teria uma leitura impossível: “se entregou a si mesmo, se exalou a si mesmo”.

Por sorte, o evangelho de Lucas com sua evocação messiânica do Salmo   XXXI que obriga literalmente a efetuar uma reintegração na psicologia testamentária israelita (vide Zohar Alma), transmite a chave interpretativa do texto. O pneuma é aqui, segundo as normas da versão grega dos LXX  , a tradução habitual de nesamah (alento, respiração), como sublimação de ruah, quer dizer, o terço psíquico que junto com os conteúdos psíquicos “purgados como a prata”, ascendidos por purificação desde ruah, se constituem no resto misterioso que segundo Zacarias é chamado a habitar   na Jerusalém celestial.

Nesamah é o “butim” particular que o Filho   do Homem leva consigo depois de sua passagem pela vida terrestre. Por isso, agora, no difícil momento do trânsito, diz ao Pai: “Em tuas mãos encomendo meu espírito (nesamah)”. [Evangelho de Tomé - Logion 25]

Ewa Kuryluk

O cristianismo primitivo procurava pela vitória na Terra   e sub specie aeternitatis, portanto por imagens da presença do poder e do triunfar de Cristo, e se afastava de visões do sofrimento   e da morte de Jesus. Apesar da mortalha de Jesus, fornecida por José de Arimateia, ter assumido uma posição significativa da Bíblia, os assim chamados sindones (lençóis de sepultamento) com as impressões do corpo inteiro de Cristo apareceram mais tarde (próximo ao final do século VII) que os retratos "verdadeiros" do Deus vivo. A veneração das mortalhas de Cristo e a ideia de que suas imagens seriam feitas de sangue  , e não de água ou suor, é relacionada a uma mudança   na concepção do Senhor, que se refletiu na arte cristã. A bucólica imagem de um jovem pastor, de um médico famoso e de um professor brilhante foi gradualmente abandonada em favor de um Cristo barbudo e líder sério, o último Juiz Pantocrator; o tema do sofrimento começou a se aproximar do centro   do destaque. E claro que o feito essencial da vida de Jesus foi sua morte. Desde que a crucificação estabeleceu que Cristo seria a cabeça divina de uma nova religião, os autores do Novo Testamento nunca se esqueceram da morte que pairava sobre suas cabeças. Os evangelistas condensaram a biografia de Jesus a menos de cem dias, "mas para os últimos dois ou três dias de sua vida eles providenciaram um cenário detalhado, quase que de hora em hora. O clímax desse cenário é o relato sobre a Sexta-Feira Santa e suas três horas na cruz".

No cristianismo primitivo a cruz funciona como um símbolo de triunfo e um talismã. O caminho   até a fé passa pela cruz. Assim é a vida do militarmente dotado Constantino que derrota Maxentius na batalha   da Ponte Milvian em 312, converte-se ao cristianismo, publica o Edito de Tolerância de Milão em 313 e faz do cristianismo uma religião do Estado  ; uma vita   que não é uma via crucis   é intimamente ligada à cruz (a descoberta da vera crux é atribuída à sua mãe). Os Pais da Igreja interpretam a cruz como sendo um símbolo de salvação e um meio para a imortalidade que afasta o mal e derrota a morte. Efraim destaca que Jesus "é o Filho do carpinteiro, que habilidosamente fez da Sua cruz uma ponte sobre Sheol e que absorve a todos; e trouxe a humanidade para a habitação da vida". (Homilia   1:4). Compara a cruz da vida com a árvore da morte: "Para a primeira Árvore que matou/ para sua graça trouxe um filho/ Ó Cruz rebento da Árvore/ que lutou contra seu senhor!/ A Árvore era a fonte   da morte/ a Cruz foi a fonte da vida" (Hino Nisibene 14:8).

Na arte cristã primitiva a cruz, um símbolo, um atributo e um emblema de Cristo, tende a ser onipotente. Muitas composições são inspiradas ou dominadas pela forma da cruz, a coerência de outras é fornecida pela repetição da marca   da cruz. Cristo é provido de um cajado-cruz, anjos   carregam cruzes e nas boas cenas de pastoreio a cruz confere ao portador um sentido de premonição. Um cajado-cruz introduz um clima de melancolia no outrora idílico óculo de mosaico do Mausoléu da Galla Placidia (cerca de 450) em Ravenna, onde Jesus, um belo e jovem pastor de olhar triste, segura a cruz com sua mão esquerda, enquanto acaricia o focinho macio de um cordeiro branco com a sua mão direita. No mosaico da abside de Santo Apolinário, em Ravenna, da metade do século VI, a crucificação é mesclada com a transfiguração. O quadro é dominado por uma cruz luminosa, engastada com joias e emergindo de um céu cheio de nuvens, que se espalha sobre uma terra florescente. A cruz está cercada por um círculo azul de estrelas e carrega um pequeno busto de Cristo, que parece um medalhão usado em torno do pescoço. A cabeça do Salvador, num minúsculo círculo, marca o centro do universo   e traz à morte o pictograma arcaico chinês do sol, um círculo com um ponto no meio, e o hieróglifo egípcio idêntico. Na paisagem cósmica solar que cerca o Salvador, a matéria aparece como ilhas de brancas-nuvens, cordeiros e a túnica branca de Santo Apolinário.

A cruz está em todos os lugares, mas a primeira cena da crucificação chega relativamente tarde. Data de cerca de 420-30 e pode ser encontrada numa plaqueta romana de marfim. A composição justapõe a crucificação de Jesus ao suicídio de Judas  , o Salvador com o Traidor, e a cruz à nova árvore da salvação com a árvore do mal de cujo galho pende o ex-aluno de Jesus. O corpo reto   e os braços de Jesus formam um ângulo reto, o pano em suas ancas tem a forma de uma cruz, e sua figura inteira, exibida em frontalidade e simetria perfeitas, segue a forma da cruz. Esse calmo e emblemático homo-crux contrasta com a atormentada silhueta de Judas, cuja face  , virada em direção a Jesus, é representada em perfil e com a agressividade de Longinus, cujo braço erguido segura a lança que penetra na lateral do Senhor. A colocação dos opostos   infunde o drama   ao relevo. Entretanto, a agonia está ausente da figura de Cristo. Um triunfador sobre a morte e o pecado  , ele é mostrado com seus olhos bem abertos (os olhos de Judas estão fechados) — um regente imortal e tranquilo a quem Maria e João, ao invés de lamentar, preferem adorar em silêncio.

A crucificação não era um motivo frequente na arte primitiva bizantina, mas parece que os pintores monásticos do Leste   foram os primeiros a transformar Cristo de um jovem solar e vitorioso num homem sofredor. Uma miniatura do final do século VI nos Evangelhos Rabbula siríacos mostra um Cristo barbudo e maltratado pendurado na cruz em sua túnica sem costuras, cujo corpo e roupas estão sendo rasgados pelas lanças do soldado romano. Esta transformação deve ter sido influenciada pelo aspecto ascético do monasticismo oriental e pela reação do artista ao Monofisitismo, que interpretava a natureza de Cristo como sendo puramente divina e portanto não sujeita a dor  . A Síria era o lar de homens que aspiravam a se parecerem cruzes vivas mesmo antes da chegada do Cristianismo. Muito antes de Simão o Estelita (que foi morar em cima de uma coluna em 423), um ascético pagão em Hierápolis subia em uma coluna duas vezes por ano para meditar em perfeita paz   (Luciano, De dea Syria, 28-9).

No Saltério de Utrecht (cerca de 830) Cristo é mostrado na cruz pela primeira vez com seus olhos fechados. O tipo mais antigo, o Christus triumphans, com os olhos abertos, pés e mãos adaptados à forma da cruz e uma coroa régia não foi abandonado, mas foi superado pelos tipos sofredores, o Christus patiens, com sua cabeça pendente e seus olhos fechados, e o Christus dolorosus, morrendo ou morto, sua face, corpo e pano de ancas cobertos de sangue e distorcidos pela agonia, e com uma coroa de espinhos   em sua cabeça. Esses tipos influenciaram os véus medievais da Verônica. Do século XIII em diante, a Face Sagrada foi mostrada, ou com vida (serena ou em sofrimento) ou morta (calma   ou desfigurada pela tortura), com ou sem a coroa de espinhos e os pingos ou traços de sangue. [Excertos de "Santa Verônica e o Sudário"]


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