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Ça ou l’histoire de la pomme racontée aux adultes

Nothomb (Ça:123-128) – Protagonistas na Queda do Paraíso

A mulher, vestígio e testemunha do Éden

segunda-feira 28 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

Em resumo, religada por seu nome à Árvore da Vida, a “Vivente” (Eva), mãe de todos os mortais   e em particular de todas as “filhas de Eva” que as perpetuam, entretém em nós a aspiração à felicidade   e mesmo suas manifestações sejam elas precárias, no curso de nossas curtas vidas, por este que se chama o amor que elas nos dão. É por conseguinte em que elas são vestígios do Éden na condição humana.

      
2,21: E Deus   fez cair sobre Adão   um sono profundo e ele se adormeceu. E ele tomou uma de suas costelas e formou um tecido de carne   em seu lugar.
2,22: E Deus levou a costela que tomara de Adão a seu ponto de incandescência e transmitiu esta a Adão.
2,23: E Adão disse: "Isso", que golpe!
Substância de minha substância, e carne retirada de minha carne!
"Isso" (ou Essa-aí) se chamará "mulher  " (isha)
Pois ela foi tomada de alguém (yish) Essa-aí!
("Isso" ou "Essa-aí" = Zoot em hebreu  )

Vimos que a palavra-chave deste nosso relato [Gen-II], que se encontra cinco   vezes, das quais três no monólogo de Adão, precisamente no início, no meio e no fim, é um pronome demonstrativo do gênero   feminino   mas empregado geralmente no sentido neutro. Ele se pronuncia “zoot”. Até aqui traduzi-o por “Isso”. Mas pode-se traduzi-lo também por “Essa-aí” em dois   casos pelo menos segundo o contexto.

Nestes dois casos designa claramente a mulher que o Adão inventa nomeando-a como um ente   aparte, e a subordinando apesar de sua origem comum. “Essa-aí” é portanto uma consequência do “Isso” pelo qual o Adão Um   e múltiplo se autodegrada em um par de tipo animal  , enquanto foi concebido por Deus “afar fora da adama”, quer dizer alhures da condição humana, e sem relação com ela, salvo de anterioridade.

Pois “alhures” é o Éden, de onde a criatura imortal “decai” e se torna mortal  . Em duas etapas no mito  . O “Isso” reduz seu espaço a três dimensões, onde podemos nos representar ela, e a saída do jardim   transforma seu tempo reversível em irreversível. A princípio ela não pode voltar atrás. Ela é prisioneira do destino e da História.

O par está destinado a se reproduzir para prolongar a aventura humana na perspectiva de um retorno ao Éden, onde encontrará a Unidade e a multiplicidade logo a imortalidade de sua origem. Todavia até aí seus dois membros não estão exatamente no mesmo plano durante sua existência precária. Fisiologicamente é evidente  . Mas nosso relato revela uma clara superioridade   da mulher sobre o homem em sua relação ao Éden, de encontro à inferioridade que lhe designa correntemente nossa cultura “sexista”.

Primeiro há o fato que o nome da mulher está ligado àquele da Árvore da Vida, mantida intacta no jardim, de onde desapareceu a Árvore do Conhecimento. Ao abrigo dos “querubins e da espada   flamejante” que dela guardam o caminho  , não para a interditá-la mas protegê-la.

Em seguida as morfologias respectivas do homem e da mulher na condição humana, se são sexualmente complementares, não são menos simbolicamente diferentes, até opostas. O corpo da mulher tem um sexo que se abre e seis que se oferecem, é acolhedor e generoso  . Aquele do homem é agressivo e fechado. A mulher, que pode ser mãe   e esposa ao mesmo tempo, sem contar outros papeis frequentes, é a mais polivalente dos dois. Quem evoca melhor o Adão Um e múltiplo da origem?

Para simplificar e tentar mais ou menos representá-lo, pode-se comparar o Adão Um e múltiplo ao andrógino de Platão. Ou a vários andróginos de Platão. Cuja componente masculina poderia se chamar um “pré-homem” e a componente feminina uma “pré-mulher”. A dupla citação da palavra “o Adão” no versículo 2,22 designa, para as necessidades da mise em scène, os dois parceiros que o relato quer fazer “comungar” a fim de ilustrar sua alteridade   original. Parece-me evidente que o primeiro do dois, aquele que Deus faz adormecer de um sono profundo e a quem retira uma “costela” (lado) que inflama e leva ao segundo, é uma pré-mulher. Tanto quanto ele lhe cerne “da carne” em lugar da costela retirada. Alusão aos seios (vide tradução do rabino Zadock-Kahn, única linguisticamente correta desta passagem, deformada pela tradição que fala de uma carne determinada, aquela que Deus teria cingido para retirar a costela). A pré-mulher é aqui exonerada de toda responsabilidade  , posto que ela só é um objeto na mão de Deus que efetua pessoalmente todas as operações a concernindo. Ao contrário, o segundo personagem, o pré-homem, não é manipulado por Deus. Ele fala. E em seu discurso se anexa a pré-mulher que se mantém passiva. Não será assim na cena ulterior ao redor da árvore, onde a Mulher conduz o jogo   e seu companheiro fica passivo. Mas a separação   já teve lugar, do fato do pré-homem. Logo pode-se dizer que, tornada a Mulher, a pré-mulher mudou do fato do pré-homem, e que ela tem menos que ele em todo caso precipitado a “queda”, mesmo se ela a confirmou.

Uma costela é o que protege o coração  , retirá-la para a dar a outro é um “dom de si” sentimental e físico, que não é apresentado no episódio como um sacrifício mas como um prazer. Pois “Deus” a inflama na passagem antes de aportá-la ao segundo personagem, que é denominado “o Adão” como o primeiro, e que é o “pré-homem” em relação à “pré-mulher” inocente senão inconsciente. Ele não esteve adormecido. Ele fala e dá uma espécie de grito de alegria  , que se pode traduzir tão bem por “Isso, que golpe!” quanto por “Essa-aí, que golpe!”.

Se se compara os comportamentos dos dois protagonistas da “queda” nos relatos paralelos do evento em Gen 2,23 e Gen 3,6 (a autodegradação do Adão masculino e a amputação pela Mulher da Árvore da Onisciência). Nota-se que o Adão masculino (o pré-Homem) reage sem se explicar, mudo, parece, pela única vontade de poder, enquanto que a Mulher se dá razões, más razões, das quais uma única parece justificada exteriormente para passar ao ato. Quando ela “vê” que a árvore é boa a comer ou preciosa para a inteligência, ela o julga assim arbitrariamente pois não se pode deduzir do aspecto de uma árvore da qual jamais se saboreou, que seja comestível ou estimulante para a inteligência. Só o qualificativo “atraente para os olhos” afirma uma sensação   pura mas não se pode disto deduzir como ela o faz, que esta evidência desmente o aviso divino de não tocar na árvore. No entanto ela “raciocina” antes de se perder, enquanto o Adão masculino mergulha cabeça baixa e não busca escusas.

Aí onde o Adão masculino se mente   ou se engana, é quando ele invoca uma falsa etimologia para nomear a pré-mulher que ele anexa. Ele a chama “isha” como se esta palavra fosse derivada de iysh que ele se atribui, enquanto ela como ele portam na origem o mesmo nome: o Adão. Em hebreu “isha” não vem da mesma raiz que iysh que conta uma consoante a mais que aquela de onde provém “isha” seja “esh”, citada anteriormente no texto. Anterior   ao “Isso”, este novo nome que evoca o fogo   (Gen 2,22) conservado na condição humana, aí evoca a origem   edênica da mulher.

Não somente a noção de mulher é anterior à “queda”, mas ela se caracteriza na fase de sursis que segue, pelo personagem que resiste à “serpente  ” enquanto “o homem” se cala e continua a se calar durante toda cena da árvore.

Enfim a mulher não é nomeadamente expulsa do jardim. O Adão, sim. Certamente é aparentemente o Adão masculino do par, sob o qual se profila o Adão, Um e múltiplo, original. No final do relato, o Adão original retoma fortemente como único responsável daquilo que se passou. Não mais que o Adão do par, a mulher não se declarou culpada do “Isso”. Seu único erro   é de não voltarem atrás enquanto sua presença no Éden lhe permitia ainda, de não ter escutado as ameaças dissuasivas de Deus, que os incitavam a isto. Mas a não menção do nome da mulher neste momento crucial não é menos significativa. Pouco antes no texto, a relação entre o Adão original e o Adão do par é explicitada na famosa frase “Tu és pó (afar) e tu voltarás a ser” (literalmente: Pó tu (és) e ao pó retornarás”, Gen 3,19). O Adão pó é o Adão original, assim qualificado em Gen 2,7 e o Adão par é aquele que o voltarás a ser, quer dizer capaz de voltar a ser o Adão original. O nome que o texto lhe dá em várias vezes é o mesmo, pois eles representam dois estados da mesma criatura. O Adão do par é uma degenerescência do Adão original e capaz de o voltar a ser. Como ele é Um e múltiplo em sua essência, isso concerne cada um de nós. Somos pessoalmente um e outro, pelo menos em potência.

A mulher é compreendida nesta possibilidade, mesmo se o Adão original se separou de sua componente feminina na “queda”. Como ele, ela é “afar” e ela o voltará a ser como o Adão do par quando ela lhe será de novo reunida. A dificuldade   é de exprimir em nossa linguagem “sexista”. O texto aí se esforça no versículo que segue imediatamente Gen 3,19 onde o Adão do par chama sua mulher do nome de Vivente (Eva), precisando que ela será a mãe de todos os mortais (Gen 3,20). Dito de outro modo, a única integralmente Vivente como o Um na multitude do Adão original. Isto não a impedirá de morrer como o Adão do par, quando eles tiverem deixado o jardim, como todos os indivíduos da humanidade mortal que eles engendrarão, e com eles de voltar a ser “afar”, quer dizer o Adão original, no final.

Aguardando, aqui também a mulher é posta aparte, nem que seja pela dicotomia de nosso vocabulário que deve escolher entre o gênero masculino e o gênero feminino (é assim o caso quando fala-se de Deus). Aparte mas talvez no primeiro lugar finalmente, pois seu nome derivado da raiz que quer dizer “fogo” aparece no texto antes do discurso às três “zoot” que marca   a “queda” e onde precisamente o Adão original o desvia de seu sentido para se subordinar a seu igual, fazendo-o derivar do nome degradado que ele se dá (’ysh). E que o qualificativo de “Vivente” concretiza “afar” sob a forma da Árvore da Vida do jardim, que permanece intacta apesar da “queda” que só destruiu a Árvore do Conhecimento, e “guarda” o caminho para permitir e não impedir nosso “retorno” no “lugar”.

Em resumo, religada por seu nome à Árvore da Vida, a “Vivente” (Eva), mãe de todos os mortais e em particular de todas as “filhas de Eva” que as perpetuam, entretém em nós a aspiração à felicidade   e mesmo suas manifestações sejam elas precárias, no curso de nossas curtas vidas, por este que se chama o amor que elas nos dão. É por conseguinte em que elas são vestígios do Éden na condição humana.

Elas são a vida, certamente desembocando sobre a morte individual, mas que se renova indefinidamente em um ersatz de imortalidade, sem a qual não haveria jamais verdadeira felicidade. Elas o anunciam, saibam ou não. Elas a encarnam frequentemente de maneira fugitiva mas que nos interdita disto desesperar. No mais profundo de nosso ser íntimo, sabemos que viemos da felicidade (o Éden) e que nós aí retornamos (o Éden) graças à mulher.

Essas certezas nos habitam antes do mito que elas engendram e que as representa. É em que é útil a sua compreensão. Mesmo se nós não cremos em sua “realidade” histórica.


Ver online : Excertos da obra de Paul Nothomb