De todas as bíblias francesas, somente aquela do rabino Sadok-Kahn (dita “Bíblia do rabinato francês”) traduz corretamente “pós destacados de“ e não “do pó de”.
Vimos que “afar” é um símbolo de leveza e “adama” um símbolo de pesadume, enquanto emanação a temer do “adam” “genérico” um instante visualizado por Deus antes da Criação do Homem , quando este, pela “Queda”, recairá no “genérico” de onde o afastou sua natureza, quer dizer na “condição humana” (outra tradução de “adama”), cultivará a “adama” em todas as suas acepções, e notadamente o “solo”. De onde seu sentido atual, muito restritivo figurando nos dicionários, mas que não contradiz seu sentido primeiro, muito mais amplo.
Quanto ao “sopro de vida” que traduz literalmente o hebreu N(SH)MT HYYM (pronunciado “nishmat haim”), parece designar a respiração. Mas o exame de algumas atestações da expressão “nishmat haim” na Bíblia histórica e profética permite uma acepção mais pertinente que confirma sua menção na “oração da manhã” do judaísmo sefarade. “Nishmat” aí quer dizer consciência e logo “nishmat haim” aqui “consciência de existir” (ver O Homem Imortal).
Depois das correções que se impõem, as duas colunas acima parecem melhor se acordar:
1) E Deus Criou o Homem a sua imagem | 1) E YHWH concebeu o Homem leveza fora do pesadume |
2) À imagem de Deus o Criou | 2) e soprou nele uma consciência de existir |
3) Macho e fêmea os Criou. | 3) e o homem se tornou um animal . |
(Gen 1,27) | (Gen 2,7) |
Mas se ele estabeleceu assim que as duas sequências relatam bem o mesmo evento, e na mesma ordem — que, ao invés de do alto para baixo, vai do interior para o exterior, do núcleo para a casca do Homem, seja Criado ou concebido — a uniformização das duas linguagens que resulta da demitologização, da desalegorização do texto da direita o torna tão vago como o texto da esquerda, que se presume explicá-lo aos novos citadinos do século X antes de nossa era. E parece que é sempre o texto da direita, original, com suas alegorias “concretas” que resta para nós também o mais instrutivo, mesmo se temos, mais que jamais hoje em dia, necessidade de óculos” para lê-lo — antes de os retirar, de fechar os olhos e de entrar em nós mesmo meditando-o e ensaiando compreendê-lo.
Que quer dizer “à imagem de Deus”, e mesmo a “leveza”? Palavras, noções mais ou menos “poéticas”. Enquanto que “pó retirado ao solo” do original, “pó aéreo ” como primeira metáfora do Homem, núcleo de sua natureza, antes mesmo que disto tome consciência! Deus concebe o Homem “em si”, e por aí o já faz existir, com a liberdade sem igual do comportamento do pó, aéreo ou estagnante segundo que ele se deixa ou não levar pelo “vento ”, com seu caráter inapreensível e indestrutível e no entanto material, à diferença da energia pura do “vento” do qual ele (o pó) é, sim, “a imagem”, ao mesmo tempo semelhante e dissemelhante.
Pois Deus Sopra — sempre o símbolo do vento — não na boca mas literalmente “nas narinas” do Homem. Na tipologia bíblica as narinas são a sede da emoção e, quando elas “se inflamam”, da cólera (orge ), em particular da cólera de Deus. Mas trata-se aqui do sopro criador que, depois de ter feito existir o Homem “leveza”, lhe faz tomar consciência. Já “imagem de Deus” “em si” o Homem o devem “para si” em a refletindo, como o sugere ao mesmo nível na coluna esquerda a inversão da ordem das palavras no enunciado da segunda frase em relação à primeira, de conteúdo aparentemente idêntico. Mais que uma respiração é portanto uma inspiração que ele recebe, uma revelação de sua própria natureza. Este segundo estado é aquele da lucidez, do discernimento , da reflexão, se adicionando ao sentimento “natural ” fundamental que o Homem tem de sua liberdade e de sua imortalidade .
Enfim, conclui a sequência mais antiga, “o Homem se torna um animal”. Não por suas próprias forças, ou aquelas da evolução mas, nos ensina a frase correspondente na coluna de face , por um terceiro e último ato criador de Deus, que adiciona assim — como bônus, como prêmio — a animalidade (e mais precisamente a sexualidade) a sua natureza. Pois deve-se ler atentamente o texto: “quem” se torna animal? Não é um pré-homem, um embrião do homem, um “golem”, uma efígie, uma estátua inerte na qual Deus sopra para dela fazer, como pretendem nossas bíblias, uma “alma vivente”. É o Homem, já existente “em si” e “para si”, já duas vezes Criado por Deus, que se torna em acréscimo, por uma terceira Criação um animal. Ele é Homem antes de só tornar animal. E já é mesmo, “em si” antes disto tomar consciência, desde que segundo as duas sequências, Deus Criou ou concebeu o Homem — que ainda nada sabe “para si”.
E não é porque esta dádiva se transforma regularmente em desgraça , pelo envelhecimento e a morte, para seus descendentes na condição humana, que se deve esquecer em vista de que “lugar” a animalidade foi dada de acréscimo ao Homem, como a princípio sua natureza. Em seguida após a última frase de nossa coluna da direita, o texto continua: “E YHWH Deus plantou um Jardim no Éden à oriente, e pôs (enquanto seu “Lugar - lugar”) o Homem que tinha concebido”.
A animalidade dada ao Homem em vista deste “lugar” sem morte, sem envelhecimento, sem usura do tempo, só apresenta vantagens. Além de sua liberdade como “imagem de Deus” como “pó no vento divino”, e esta que lhe garante a consciência que dele tem, ela lhe busca uma liberdade de movimento e de comunhão incomparáveis. Uma sensibilidade reforçada, uma sensualidade, um desfrute, uma objetividade, um contato carnal com toda a Criação que, longe de ser uma regressão em relação a sua natureza, a exaltam e a embelezam.