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TÚNICAS DE CEGO

Nothomb (TC:67-71) – "és pó", sopro de vida, Éden

OS GRAUS DA LIBERDADE

segunda-feira 28 de março de 2022, por Cardoso de Castro

      

A animalidade dada ao Homem   em vista deste “lugar” [Éden] sem morte, sem envelhecimento, sem usura   do tempo, só apresenta vantagens. Além de sua liberdade como “imagem de Deus  ” como “pó no vento   divino”, e esta que lhe garante a consciência que dele tem, ela lhe busca uma liberdade de movimento   e de comunhão incomparáveis. Uma sensibilidade   reforçada, uma sensualidade, um desfrute, uma objetividade, um contato carnal com toda a Criação que, longe de ser uma regressão em relação a sua natureza, a exaltam e a embelezam.

      
A Septuaginta   traduzia ainda “pós fora da terra  ”. Foi a Vulgata que transformou “o pó”, alegoria   de um estado  , em uma matéria-prima, traduzindo “do pó”. O hebreu   é “afar   min haadama” (Gen 2,7) onde “haadama”, que não significa a terra, não é também o complemento do nome de “afar” como “pó” o é “da terra” em nossas bíblias.

De todas as bíblias francesas, somente aquela do rabino Sadok-Kahn (dita “Bíblia do rabinato francês”) traduz corretamente “pós destacados de“ e não “do pó de”.

Vimos que “afar” é um símbolo de leveza   e “adama” um símbolo de pesadume, enquanto emanação   a temer do “adam” “genérico” um instante   visualizado por Deus   antes da Criação do Homem  , quando este, pela “Queda”, recairá no “genérico” de onde o afastou sua natureza, quer dizer na “condição humana” (outra tradução de “adama”), cultivará a “adama” em todas as suas acepções, e notadamente o “solo”. De onde seu sentido atual, muito restritivo figurando nos dicionários, mas que não contradiz seu sentido primeiro, muito mais amplo.

Quanto ao “sopro de vida” que traduz literalmente o hebreu N(SH)MT   HYYM (pronunciado “nishmat haim”), parece designar a respiração. Mas o exame   de algumas atestações da expressão “nishmat haim” na Bíblia histórica e profética permite uma acepção mais pertinente que confirma sua menção na “oração da manhã” do judaísmo sefarade. “Nishmat” aí quer dizer consciência e logo “nishmat haim” aqui “consciência de existir” (ver O Homem Imortal).

Depois das correções que se impõem, as duas colunas acima parecem melhor se acordar:

1) E Deus Criou o Homem a sua imagem 1) E YHWH   concebeu o Homem leveza fora do pesadume
2) À imagem de Deus o Criou 2) e soprou nele uma consciência de existir
3) Macho e fêmea os Criou. 3) e o homem se tornou um animal  .
(Gen 1,27) (Gen 2,7)

Mas se ele estabeleceu assim que as duas sequências relatam bem o mesmo evento, e na mesma ordem   — que, ao invés de do alto para baixo, vai do interior para o exterior, do núcleo para a casca do Homem, seja Criado ou concebido — a uniformização das duas linguagens que resulta da demitologização, da desalegorização do texto da direita o torna tão vago como o texto da esquerda, que se presume explicá-lo aos novos citadinos do século X antes de nossa era. E parece que é sempre o texto da direita, original, com suas alegorias “concretas” que resta para nós também o mais instrutivo, mesmo se temos, mais que jamais hoje em dia, necessidade   de óculos” para lê-lo — antes de os retirar, de fechar os olhos e de entrar em nós mesmo meditando-o e ensaiando compreendê-lo.

Que quer dizer “à imagem de Deus”, e mesmo a “leveza”? Palavras, noções mais ou menos “poéticas”. Enquanto que “pó retirado ao solo” do original, “pó aéreo  ” como primeira metáfora do Homem, núcleo de sua natureza, antes mesmo que disto tome consciência! Deus concebe o Homem “em si”, e por aí o já faz existir, com a liberdade sem igual do comportamento   do pó, aéreo ou estagnante segundo que ele se deixa ou não levar pelo “vento  ”, com seu caráter inapreensível e indestrutível e no entanto material, à diferença   da energia pura do “vento” do qual ele (o pó) é, sim, “a imagem”, ao mesmo tempo semelhante e dissemelhante.

Pois Deus Sopra — sempre o símbolo do vento — não na boca mas literalmente “nas narinas” do Homem. Na tipologia bíblica as narinas são a sede da emoção e, quando elas “se inflamam”, da cólera (orge  ), em particular da cólera de Deus. Mas trata-se aqui do sopro criador que, depois de ter feito existir o Homem “leveza”, lhe faz tomar consciência. Já “imagem de Deus” “em si” o Homem o devem “para si” em a refletindo, como o sugere ao mesmo nível na coluna esquerda a inversão da ordem das palavras no enunciado da segunda frase em relação à primeira, de conteúdo aparentemente idêntico. Mais que uma respiração é portanto uma inspiração que ele recebe, uma revelação de sua própria natureza. Este segundo estado é aquele da lucidez, do discernimento  , da reflexão, se adicionando ao sentimento  natural  ” fundamental que o Homem tem de sua liberdade e de sua imortalidade  .

O texto diz que Deus soprou “nas narinas” do Homem (Gen 2,7). Depois da “Queda” é “com o suor de suas narinas” que o Homem em exílio subsistirá penosamente (3,19). Estas duas únicas atestações de ‘PYM (pronunciado “appayim”) na Bíblia das Origens são tão alegóricas quanto os frequentes empregos da expressão nas Bíblias histórica e profética para descrever a cólera de Deus (orge).

Enfim, conclui a sequência mais antiga, “o Homem se torna um animal”. Não por suas próprias forças, ou aquelas da evolução mas, nos ensina a frase correspondente na coluna de face  , por um terceiro e último ato criador de Deus, que adiciona assim — como bônus, como prêmio — a animalidade (e mais precisamente a sexualidade) a sua natureza. Pois deve-se ler atentamente o texto: “quem” se torna animal? Não é um pré-homem, um embrião do homem, um “golem”, uma efígie, uma estátua inerte na qual Deus sopra para dela fazer, como pretendem nossas bíblias, uma “alma   vivente”. É o Homem, já existente “em si” e “para si”, já duas vezes Criado por Deus, que se torna em acréscimo, por uma terceira Criação um   animal. Ele é Homem antes de só tornar animal. E já é mesmo, “em si” antes disto tomar consciência, desde que segundo as duas sequências, Deus Criou ou concebeu o Homem — que ainda nada sabe “para si”.

Em hebreu o verbo “devir” se exprime pelo verbo de existência HYH seguido da preposição L que marca   a passagem de um estado a outro, de um ponto a um outro, etc. Em Gen 2,7 “e o Homem se tornou um animal” se escreve “WYHY H’DM LNP(SH) HYH”. O que distingue esta frase daquelas do tipo, frequente no relato dos Seis dias “WYHW ‘WR” (“e houve luz”) é que a mais de um sujeito ela tem um atributo. Ela constata não a aparição mas a transformação de seu sujeito, na ocorrência o Homem.

E não é porque esta dádiva se transforma regularmente em desgraça  , pelo envelhecimento e a morte, para seus descendentes na condição humana, que se deve esquecer em vista de que “lugar” a animalidade foi dada de acréscimo ao Homem, como a princípio sua natureza. Em seguida após a última frase de nossa coluna da direita, o texto continua: “E YHWH Deus plantou um Jardim no Éden à oriente, e pôs (enquanto seu “Lugar - lugar”) o Homem que tinha concebido”.

Precisemos ainda que segundo o relato, só penetram no jardim  , além do Homem, animais e plantas extraídas previamente do pesadume (“min haadama” Gen 2,9 e Gen 2,19) mas não em virtude de   sua leveza natural (“afar”) como no caso do Homem (Gen 2,7). Parecem ser aí subtraídos provisoriamente ao ciclo   biológico, ao qual o Homem escapa por sua natureza mas no qual cai, pela “Queda”, contra sua natureza, e aí se submete em engendrando descendentes que morrerão, dando nascimento ao que se chama a “raça   humana” mas que prefiro nomear a “condição humana”. De fato a “adama”.

A animalidade dada ao Homem em vista deste “lugar” sem morte, sem envelhecimento, sem usura   do tempo, só apresenta vantagens. Além de sua liberdade como “imagem de Deus” como “pó no vento divino”, e esta que lhe garante a consciência que dele tem, ela lhe busca uma liberdade de movimento   e de comunhão incomparáveis. Uma sensibilidade reforçada, uma sensualidade, um desfrute, uma objetividade, um contato carnal com toda a Criação que, longe de ser uma regressão em relação a sua natureza, a exaltam e a embelezam.


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